Leitura Partilhada
terça-feira, agosto 09, 2005
  O encontro marcado
"O Encontro Marcado", ápice do Sabino romancista, é considerado o "romance de uma geração". Nas palavras do próprio autor: "para mim é apenas o da minha experiência pessoal. Mas faço parte de uma geração e naturalmente suas características se refletem nos personagens que criei à minha imagem e semelhança."

Os problemas, as angústias, as soluções, os conceitos e tudo o mais estão embutidos naquele período - a obra é de 1956. Tudo está ali: a infância transgressora, a juventude rebelde, a desilusão após o casamento, os falsos amigos. "O problema é o seguinte: não há problema!". E a vida seguia.

Sabino relata que precisava escrever o livro para ele próprio: "Aos 30 anos a minha vida havia chegado a um impasse. Eu precisava saber com quem contava, para finalmente começar. Foi uma espécie de 'apuração de haveres' - este seria a princípio o título do livro, influência do cargo que exercia então, de escrivão na Vara de Órfãos e Sucessões. Não teria condições de sobrevivência se não escrevesse sobre o que tinha vivido até aquele momento. Tinha um encontro marcado comigo mesmo."

E é este encontro o tema do livro. Como diz a carta de Hélio Pellegrino, que abre magnificamente o livro: "O homem, quando jovem, é só, apesar de suas múltiplas experiências. (...) Acontece, entretanto, que nascemos para o encontro com o outro, e não o seu domínio. Encontrá-lo é perdê-lo, é contemplá-lo na sua libérrima existência, é respeitá-lo e amá-lo na sua total e gratuita inutilidade. (...) Neste momento, a solidão nos atravessa como um dardo. É meio-dia em nossa vida, e a face do outro nos contempla como um enigma. Feliz daquele que, ao meio-dia, se percebe em plena treva, pobre e nu. Este é o preço do encontro, do possível encontro com o outro."

Não sei o que veio antes: a carta de Hélio ou a idéia de resolver (ou saber realmente quais os) seus problemas. Mas tudo o que a correspondência toca está ali no texto. É um resumo do que se irá encontrar no romance.

Quanto à frase inicial, não é antológica, nem uma das melhores já feitas: "A casa tinha três quartos, duas salas, banheiro, copa, cozinha, quarto de empregada, porão, varanda e quintal." Mas diante das quase trezentas páginas isso não é um defeito. O livro já começa saboroso, em ritmo de crônica, o que também não é um defeito - como querem alguns -, mas depois a narrativa adquire outro tom, sem, contudo, perder o humor característico que fez a fama de Fernando Sabino.

Essa mudança de tom se deve à depuração que Sabino realizou: "Ao todo, levei dois anos para terminá-lo. Tive de reescrever tudo três vezes. Fora mil e um descaminhos. Percorri vários atalhos sem saída, escrevi 1300 páginas (!!!) para aproveitar só 320. Perdia às vezes dezenas de páginas."

Da infância serelepe e sem limites de Eduardo Marciano, alter-ego de Sabino, passa-se a uma adolescência atormentada e irresponsável, além de extremamente contraditória, como não poderia deixar de ser. Discussões filosóficas, bebedeiras, brincadeiras com o delegado. Seus amigos e companheiros de farra, Mauro e Hugo, inspirados nos "Quatro Cavaleiros do Apocalipse" - Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Hélio Pellegrino e o próprio Sabino -, compõem um trio inesquecível. Quantos que leram o livro não andaram pelas ruas de Minas Gerais, sentaram no banco da praça, "puxaram angústia"...

Eduardo é definido por Hugo como "o puro, o intocado, o que se preserva. (...) Seu ar de quem está sempre indo a um lugar que não é aqui, para se encontrar com alguém que não somos nós. (...) De nós três, talvez, o mais miserável, talvez o mais desgraçado, porque condenado à incapacidade de amar, pelo orgulho, ou à solidão, pela renúncia."

A definição se enquadra especialmente porque Eduardo é um escritor, e o trio orgulho-solidão-renúncia é, na verdade, a base do escritor. Em "A Hora da Estrela", da amiga Clarice Lispector, o narrador Rodrigo S.M. renuncia a tudo: futebol, mulheres, cerveja. Somente assim ele poderá escrever. Daí a famosa frase: "agora é tempo de morangos" - tão absorvido em seu ofício, Rodrigo S.M. perdeu a noção do tempo e somente após concluir sua obra tornou a reparar que era tempo de morangos.

Um capítulo a parte, dentre os muitos, são as discussões entre os três adolescentes. Respostas para tudo, citação de poetas, frases desconexas, etc. A rapidez de pensamento ganha com a concisão e a depuração de Sabino. Todas as cenas e diálogos se adequam perfeitamente à história. Aquilo realmente aconteceu e não poderia ter sido de outro modo, é a conclusão a que se chega.

E ai está o mérito do atormentado Sabino aos 30 anos: fez do seu drama uma experiência única, porém universal. Mudam-se o lugares, mudam-se as pessoas, contudo, sempre existirão pessoas como os arquétipos retratados: o pai, seu Marciano, que se realiza com o filho; Mauro, o revoltado ("são uns vendidos"); Hugo, o frágil, o doente; Amorim, o amigo sacana; Antonieta, a mulher desinteressada, etc.

Em suma, "O Encontro Marcado" é um clássico. E brasileiro. Ficam muitas coisas da sua leitura, muitas frases, e ficam também "três coisas: a certeza de que ele estava sempre começando, a certeza de que era preciso continuar e a certeza de que seria interrompido antes de terminar."

Gabriel
 

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