Leitura Partilhada
sexta-feira, janeiro 13, 2006
  Mestria
Shakespeare conheceu bem a alma humana e, sobretudo, adivinhou-lhe os meandros mais doces e , simultaneamente, mais perversos. A extrordinária evolução deste diálogo, que começa com uma mulher desesperada e acaba com uma mulher rendida é a prova de toda a sus mestria.

Ana
Quê? tremem? Têm medo! Infelizmente não o posso estranhar; não são senão mortais, e olhos mortais não podem suportar a vista do demónio. Arreda-te, execrável ministro do Inferno! Tinhas poder apenas sobre o seu corpo mortal, mas não tens jurisdição sobre a sua alma; assim, afasta-te.

Glocester
Lindo anjo, por caridade, não se agaste.

Ana
Perverso demónio, em nome de Deus, vai-te e deixa-nos em paz. Fizeste deste feliz torrão um Inferno, de onde surge, devido a ti, um concerto de gemidos e de maldições....
Ó céu, destrói com um raio teu o assassino! Abre os teus abismos, ó terra, e devora-o vivo...

Glocester
Minha senhora, desconhece as leis da caridade, que nos ordenam de retribuir o mal com o bem, e de abençoar os que nos amaldiçoam.

Ana
Celerado, desconheces todas as leis divinas e humanas; não há animal, por mais feroz que seja, que não conheça as leis da piedade.

Glocester
Sou-lhe completamente estranho, portanto não sou uma fera.

Ana
Que prodígio; ouvir um demónio falar verdade!
....
Monstro mais corrupto do que o pensamento possa imaginar, não tens outra justificação possível senão enforcares-te.

Glocester
Mostrar um tal desespero seria acusar-me a mim próprio.

Ana
Foste provocado pela tua alma sanguinária, que nunca sonhou senão assassinatos e morticínios. Não mataste tu este rei?

Glocester
Fui eu, não o nego.

Ana
Não negas, monstro? Pois Deus não me recusará que a tua alma seja condenada por tão nefando crime! Ah! Era bom, humano e virtuoso!

Glocester
Melhor para o reino dos Céus, que o possui agora.

Ana
Está no Céu, onde tu nunca entrarás.

Glocester
Mereço, portanto, os seus agradecimentos, de para lá o ter enviado; porque o seu lugar era mais no Céu do que na Terra.

Ana
E o teu lugar é no Inferno!

Glocester
Sei ainda outro, se mo permite nomear.

Ana
Uma prisão, sem dúvida?

Glocester
A sua alcova.
...
Existe um homem que a ama mais do que ele nunca a amou.

Ana
Onde está ele?

Glocester
Aqui! (Ela cospe-lhe na cara). Para que me cospe na cara?

Ana
Quereria que a minha saliva fosse um veneno para ti.
...

Glocester
...os teus olhos arrancaram lágrimas aos meus.
....Nunca supliquei nem a amigo nem a inimigo....mas agora , que a tua beleza é o prémio a que aspiro, o meu orgulhoso coração desce à súplica e obriga-me a falar. (Ela olha para ele com desprezo)
...
se o teu coração, repleto de vingança, não me pode perdoar, toma esta aguda espada (pega na espada que ele lhe apresenta), crava-a neste peito leal, e separa dele a alma que te adora. Apresento o meu peito descoberto ao golpe mortal, e de joelhos te imploro a morte. (Apresenta-lhe o peito descoberto) Fere sem hesitar; fui eu que matei o Rei Henrique (ela dirigi-lhe ao peito a ponta da espada), mas foi a tua beleza que me incitou ao crime. (Abaixa a espada). Apressa-te, fere, fui eu que apunhalei o jovem Eduardo (torna a apontar-lhe a espada ao peito), mas foi o teu rosto celestial que armou o meu braço. (Deixa cair a espada). Fere, ou ordena-me que me levante.

Ana
Levanta-te traidor; apesar de desejar a tua morte, não quero ser o teu algoz.

Glocester
Pois bem, ordena-me que me mate pelas minhas próprias mãos, e fá-lo-ei.

Ana
Já to disse.

Glocester
Foi num momento de cólera; torna-o a dizer, e no mesmo instante esta mão, que pelo amor que te consagro matou aquele que te amava, dará a morte por igual amor áquele que ainda mais sinceramente te ama; assim serás cúmplice em duas mortes.

Ana
Quereria poder ler no fundo do teu coração.

Glocester
É ele que fala pela minha boca.

Ana
Receio que ambos mintam.
....

Glocester
Estão pois feitas as pazes.

Ana
Mais tarde o saberá

Glocester
Mas posso viver esperando?

Ana
Creio que todos os homens assim vivem.
...
Glocester
Se permitisse que o seu humilde servo ainda lhe pedisse uma graça, assegurava para sempre a sua felicidade.
...
Venha para a minha residência de Crosby...lhe suplico que me conceda esta graça.

Ana
Concedo-lha de todo o meu coração; é para mim de grande prazer vê-lo tão arrependido.
...

Glocester
...Haverá quem acredite que se possa cortejar uma mulher, e triunfar num tal momento?

Acto Primeiro
Cena II

Troti
 

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