Leitura Partilhada
sexta-feira, outubro 31, 2008
 
O tempo é o maior tesouro de que o Homem pode dispor
o tempo é o nosso melhor alimento
nosso bem de maior grandeza, não tem começo, não tem fim.
Rico é o homem que aprendeu a conviver com o tempo,
aproximando-se dele com ternura,
não se rebelando contra o seu curso...
O equilíbrio da vida está essencialmente nesse bem supremo
e quem souber com acerto a quantidade de vagar ou de espera que se deve pôr nas coisas
não corre nunca o risco, ao buscar por elas, de defrontar-se com o que não é,
pois só a justa medida do tempo dá a justa natureza das coisas.

(da versão fílmica)
azuki
 
quinta-feira, outubro 30, 2008
 
- Nós amamos-te muito, André. Causar-te-ia espanto a desolação da família, a mãe que geme pelos cantos desde que te foste, Ana inconsolável e arredia, o pai fechado no seu silêncio olhando não se sabe para onde, as tuas gavetas vazias… Começou a desunião da família, por favor, regressa ao teu lugar.

- Não é verdade, a nossa desunião começou bem mais cedo do que julgas. Havia alguém, no lado esquerdo da mesa, que carregava um estigma e era num sítio escondido do bosque que se libertava do olhar severo da família. A minha voz findou, a estranheza apareceu, a claridade da nossa casa passou a perturbar-me. Calando a minha revolta, eu afastava-me cada vez mais.

O jogo suave da sombra e da luz, a relva calma, os movimentos irrequietos das crianças, a suprema dedicação da mãe à harmonia da família, tantas promessas de amor enchendo os campos de risos… A força e a alegria de uma casa podem desaparecer com um só sopro.

azuki
 
quarta-feira, outubro 29, 2008
  Ana
Desde minha fuga, era calando minha revolta (tinha contundência o meu silêncio! tinha textura a minha raiva!) que eu, a cada passo, me distanciava lá da fazenda, e se acaso distraído eu perguntasse “para onde estamos indo?” - não importava que eu, erguendo os olhos, alcançasse paisagens muito novas, quem sabe menos ásperas, não importava que eu, caminhando, me conduzisse para regiões cada vez mais afastadas, pois haveria de ouvir claramente de meus anseios um juízo rígido, era um cascalho, um osso rígido, desprovido de qualquer dúvida: “estamos indo sempre para casa”.
"Lavoura Arcaica", Raduan Nassar, Relógio D'Água
Tínhamos os nossos limites tão bem delineados… dizia o pai, a paciência é a virtude das virtudes, é insensato quem não se submete, é cego quem não espera. Dizia o pai, confiemos em Deus e no Verbo, não questionando nunca os seus desígnios insondáveis, tal como não se questiona o pôr-do-sol ao fim de um dia ou a sede do gado que caminha para o bebedouro. Dizia o pai, mão alguma da nossa casa há-de fechar-se contra o irmão transtornado, o amor na família é a suprema paciência e é na nossa união que está a essência dos nossos princípios (era eu o irmão transtornado, era eu quem trazia o demónio no corpo, era Ana a minha doença, a minha loucura, o meu calafrio, o meu oxigénio, a minha obsessão, era eu o irmão transtornado, era ela o meu delírio).

(...) ninguém ouviu melhor cada um em casa, Pedro, ninguém amou mais, ninguém conheceu melhor o caminho da nossa união (...) (NASSAR, 2002, edição brasileira)

azuki
 
terça-feira, outubro 28, 2008
 
(...) e é enxergando os utensílios, e mais o vestuário da família, que escuto vozes difusas perdidas naquele fosso, sem me surpreender contudo com a água transparente que ainda brota lá do fundo, e recuo em nossa fadigas, e recuo em tanta luta exausta, e vou puxando desse feixe de rotinas, um a um, os ossos sublimes do nosso código de conduta: o excesso proibido, o zelo uma exigência, e, condenado como vício, a prédica constante contra o desperdício, apontado sempre como ofensa grave ao trabalho (...) "Lavoura Arcaica" (pags. 77-78), Raduan Nassar, Relógio D'Água
É preciso começar pela verdade e acabar na verdade, dizia meu pai (será que a minha verdade é igual à verdade dos outros...?) Todos os dias, três vezes por dia, o ritual da família de olhos baixos em torno da mesa, e a prédica interminável do pai contra a preguiça e contra o desperdício. Todos os dias, três vezes por dia, o terror incessante das suas palavras rigorosas a fulminar as paixões humanas: as paixões são o desequilíbrio, devemos evitá-las a todo o custo, erguendo uma barreira entre o corpo e o mundo, e derrotá-las, pois enquanto houver pão para cozer e terra para lavrar e a família reunida, derrotá-las-emos (eu via a mãe, seus olhos suplicantes, e sofria por lhe dizer, mãe, eu não sou quem a senhora pensa, eu não sou o seu André, eu sou outro, aquele dos olhos escuros, o filho tresmalhado com o seu sarcasmo, o filho arredio que jamais se lembrou de abandonar a casa porque sabia das decepções que o esperavam no sítio do desbragado atordoamento dos sentidos). A maior das qualidade é a paciência, dizia o pai (mas eu acho que a impaciência também faz sentido e, por isso, quero ser o meu próprio mestre).

(…) eu tinha de gritar em furor que a minha loucura era mais sábia que a sabedoria do pai, que a minha enfermidade me era mais conforme que a saúde da família, que os meus remédios não foram jamais inscritos nos compêndios, mas que existe uma outra medicina (a minha!), e que fora de mim eu não reconhecia qualquer ciência, e que era tudo só uma questão de perspectiva, e o que valia era o meu e só o meu ponto de vista, e que era um requinte de saciados testar a virtude da paciência com a fome de terceiros (…) (ibidem, pag 111)

azuki
 
segunda-feira, outubro 27, 2008
  o tempo
(...) amainava a febre dos meus pés na terra úmida, cobria meu corpo de folhas e, deitado à sombra, eu dormia na postura quieta de uma planta enferma vergada ao peso de um botão vermelho (...) (NASSAR, 2002, edição brasileira)
O tempo de violentas ondas imprevistas, da pressa e do encantamento, da absoluta urgência; o tempo em que caminhamos desajeitados, tacteando, tropeçando (sim, como O’Neill). O tempo do saber, da calma, do ensinamento; o tempo sereno da maturidade. O tempo dos que mudam para se não voltarem a encontrar; o tempo do fim das lealdades e das crenças, das traições e das relativizações, do embotamento da vontade. O tempo dos que, mudando, permanecem unos, resistindo à sua implacável usura. O tempo que mói e que desgasta, o da amargura, do fim da frescura; o tempo que desbota, que nos seca por dentro e que nos faz mirrar. O tempo que esbate, que é cura milagrosa, crivo que poupa o que interessa preservar. O tempo que cose fortes nós no tecido dos nossos afectos. O tempo que nos foge, o tempo que nos foge.

azuki
 
sábado, outubro 25, 2008
 
azuki
 
sexta-feira, outubro 24, 2008
  epilepsia
(…) “um epilético” eu berrava e soluçava dentro de mim, sabendo que atirava numa suprema aventura ao chão, descarnando as palmas, o jarro da minha velha identidade elaborado com o barro das minhas próprias mãos, e me lançando nesse chão de cacos, caído de boca num acesso louco eu fui gritando (...) (NASSAR, 2002, edição brasileira)


S.Valentim, patrono dos epilépticos, é representado benzendo os corpos de dois doentes; ao canto está um porco, símbolo do demónio. Durante largos séculos, estas interpretações permaneceram, acreditando-se ainda que a epilepsia pudesse ser uma doença contagiosa ou mental, e ainda hoje não é raro as pessoas menos esclarecidas discriminarem os epilépticos ou socorrerem-se de medicinas alternativas para combaterem os espíritos. Foi apenas em 1873 que o neurologista inglês Jackson estabeleceu que a epilepsia se devia a descargas da substância cinzenta cerebral.
fonte: Liga Portuguesa Contra a Epilepsia

Raduan Nassar sofreu convulsões enquanto jovem, talvez se trate de um pormenor autobiográfico. Como assumir a doença, num contexto onde a palavra de ordem era a normalização? Traz o demónio no corpo… “Você tem um irmão epiléptico”… Que crime hediondo cometeu? “Condenou uma família inteira ao vexame”. Sempre o mesmo som abafado e rouco: traz o demónio no corpo, traz o demónio no corpo… “Deus abandonou esta família”. O que se nos apresenta como poético, campestre e pleno de afectos, acaba por transformar-se numa hedionda história de rejeição.

Na verdade, não me parece que André fosse epiléptico, mas é um facto que trazia o demónio no corpo.

azuki
 
quarta-feira, outubro 22, 2008
 
(...) não tenho culpa desta chaga, deste cancro, desta ferida, não tenho culpa deste espinho, não tenho culpa desta intumescência, deste inchaço, desta purulência, não tenho culpa deste osso túrgido, e nem da gosma que vaza pelos meus poros, e nem deste visgo recôndito e maldito, não tenho culpa deste sol florido, desta chama alucinada, não tenho culpa do meu delírio. (...) (NASSAR, 2002, edição brasileira)

Parecendo estar a dirigir-se ao irmão (de facto, estava), André falava para si mesmo, em monólogo, num aflitivo e arrepiante desenrolar de palavras. É extraordinária esta faculdade de, como leitores, entrarmos na cabeça de alguém, nesses momentos únicos, íntimos, irreplicáveis.

azuki
 
segunda-feira, outubro 20, 2008
 
pertenço como nunca desde agora a essa insólita confraria dos enjeitados, dos proibidos, dos recusados pelo afeto, dos sem-sossego, dos intranqüilos, dos inquietos, dos que se contorcem, dos aleijões com cara de assassino que descendem de Caim (quem não ouve a ancestralidade cavernosa dos meus gemidos?) (NASSAR, 2002, edição brasileira)

Perante a censura ou a perspectiva da censura, André afasta-se para se abandonar a uma sanha destrutiva. Mais do que a sua própria ruína, ele carrega o peso da desintegração da família, um sentimento que não deve ser nada fácil de gerir.

azuki
 
quinta-feira, outubro 16, 2008
 
[...] era ele, Pedro, era o pai que dizia sempre é preciso começar pela verdade e terminar do mesmo modo, era ele sempre dizendo coisas assim, eram pesados aqueles sermões de família, mas era assim que ele os começava sempre, era essa a sua palavra angular, era a essa pedra em que tropeçávamos quando crianças, era a essa pedra que nos esfolava a cada instante, vinham daí as nossas surras e as nossas marcas no corpo, veja, Pedro, veja meus braços [...] (da versão fílmica)

O silêncio de Ana pode ser visto em paralelo com a verborreia de André: à excessiva fluência do irmão, Ana responde com uma absoluta contenção, duas formas de contestar o discurso do pai, para quem o Verbo tinha uma força invencível, mas cujas histórias não ajudam estes dois filhos. As suas palavras são insuficientes, inapropriadas, ridículas mesmo, e a dita Verdade possui muitas faces.

azuki
 
terça-feira, outubro 14, 2008
 
(…) ele [meu irmão] falou ainda dos anseios isolados de cada um em casa, mas que era preciso refrear os maus impulsos, moderar prudentemente os bons, não perder de vista o equilíbrio, cultivando o autodomínio, precavendo-se contra o egoísmo e as paixões perigosas que o acompanham, procurando encontrar a solução para nossos problemas individuais sem criar problemas mais graves para os que eram de nossa estima, e que para ponderar em cada caso tinha sempre existido o mesmo tronco, a mão leal, a palavra de amor e a sabedoria dos nossos princípios (…)
"Lavoura Arcaica" (pags. 23-24), Raduan Nassar, Relógio D'Água


André nasceu numa família protectora e unida, parada no tempo e dominada pelo dogma, com respostas para situações ditas normais, mas sem capacidade para lidar com sentimentos e actos heterodoxos. Ele é a ovelha negra que não aceita as regras do jogo e não actua da mesma forma. Quando a cabrinha deixou de bastar, André começa a olhar para a irmã. Mais tarde, também o irmão mais novo é sujeito às carícias proibidas de um André que “estava escuro por dentro, não conseguia sair da carne dos seus sentimentos”. O que fazer, quando se perde o equilíbrio? Que resposta para o incesto? Na verdade, nem uma família avançada nos seus modos e valores saberia como responder.

azuki
 
segunda-feira, outubro 13, 2008
 
(...) e embora caído numa sanha de possesso vi que meu irmão, assombrado pelo impacto do meu vento, cobria o rosto com as mãos, era impossível adivinhar que ríctus lhe trincava o tijolo requeimado da cara, que faísca de pedra lhe partia quem sabe os olhos, estava claro que ele tateava à procura de um bordão, buscava com certeza a terra sólida e dura, eu podia até escutar seus gemidos gritando por socorro, mas vendo-lhe a postura profundamente súbita e quieta (era o meu pai) me ocorreu também que era talvez num exercício de paciência que ele se recolhia, consultando no escuro o texto dos mais velhos, a página nobre e ancestral, a palma chamando à calma, mas na corrente do meu transe já não contava a sua dor misturada ao respeito pela letra dos antigos, eu tinha que gritar em furor que a minha loucura era mais sábia do que a sabedoria do pai, que a minha enfermidade me era mais conforme que a saúde da família, que os meus remédios não foram jamais inscritos nos compêndios, mas que existia uma outra medicina (a minha!), e que fora de mim eu não reconhecia qualquer ciência, e que era tudo só uma questão de perspectiva, e o que valia era o meu e só o meu ponto de vista, e que era um requinte de saciados testar a virtude da paciência com a fome de terceiros, e dizer tudo isso num acesso verbal, espasmódico, obsessivo, virando a mesa dos sermões num revertério, destruindo travas, ferrolhos e amarras, tirando não obstante o nível, atento ao prumo, erguendo um outro equilíbrio, e pondo força, subindo sempre em altura, retesando sobretudo meus músculos clandestinos, redescobrindo sem demora em mim todo o animal, cascos, mandíbulas e esporas, deixando que um sebo oleoso cobrisse minha escultura enquanto eu cavalgasse fazendo minhas crinas voarem como se fossem plumas, amassando com minhas patas sagitárias o ventre mole deste mundo, consumindo neste pasto um grão de trigo e uma gorda fatia de cólera embebida em vinho (...)
"Lavoura Arcaica", Raduan Nassar
 
sexta-feira, outubro 10, 2008
  o tempo (ii)
o tempo, o tempo, esse algoz às vezes suave, às vezes mais terrível, demónio absoluto conferindo qualidade a todas as coisas, é ele ainda hoje e sempre quem decide e por isso a quem me curvo cheio de medo e erguido em suspense me perguntando qual o momento, o momento preciso da transposição? que instante, que instante terrível é esse que marca o salto?
"Lavoura Arcaica" (pag. 99), Raduan Nassar, Relógio D'Água

Não gosto da expressão “passar o tempo” e procuro que a minha higiene diária não o desperdice com momentos de enfado, ou a ver telenovelas, ou a conversar com pessoas que nada me dizem; nas leituras, privilegio os clássicos (valorizados pelo tempo, serão sempre escolha acertada, mesmo que deles não goste); para os denominados ”tempos mortos”, há sempre um livro perto de mim; uso o DVD ou a Box para fugir aos intervalos, não navego na internet só por navegar, não gasto tempo a dizer chachadas no messenger; escolho as companhias, estudo previamente os espectáculos, tento aproveitar as sinergias do que vivo e aprendo; procuro usar criteriosamente as horas de trabalho para trabalhar; nunca lamento o tempo perdido, tento usar o arrependimento de forma virtuosa, estimulo as recordações que funcionem, não como motor de infelicidade e de distanciamento, mas como uma importante amarra do presente; tenho sempre tempo para a ginástica e para os afectos.

azuki
 
quarta-feira, outubro 08, 2008
  o tempo
à semelhança da capa da Relógio D'Água,
um quadro da minha mãe: Fernanda Ferreira sobre pintura de Mark Rothko


O tempo, o tempo é versátil, o tempo faz diabruras, o tempo brincava comigo, o tempo se espreguiçava provocadoramente, era um tempo só de esperas, me aguardando na casa velha por dias inteiros; era um tempo também de sobressaltos, me embaralhando ruídos, confundindo minhas antenas, me levando a ouvir claramente acenos imaginários, me despertando com a gravidade de um julgamento mais áspero, eu estou louco! (...) o tempo, o tempo me pesquisava na sua calma, o tempo me castigava (...) porque existe o tempo de aguardar e o tempo de ser ágil (foi essa uma ciência que aprendi na infância e esqueci depois)
"Lavoura Arcaica" (pags. 95-97), Raduan Nassar, Relógio D'Água

Estes trechos sobre o tempo são uma das razões que me fazem amar o romance de Nassar. O tempo, o tempo, nada mais precioso do que o tempo. Desaproveitá-lo é um acto de fraca inteligência e de injustiça para connosco. Sendo, porventura, a nossa principal riqueza, ele deve ser acarinhado, com a consciência de que cada momento é único e irrepetível. Não pretendo, contudo, fazer a apologia da produtividade desenfreada, pois os minutos têm que ter qualidade e não necessariamente uma tradução concreta (adoro dormir e considero que essa é uma óptima forma de aproveitar o tempo). Também não se trata da nostalgia de pensar no que já foi ou se deixou fugir, nem na odiosa perspectiva do oportunismo, nem de sugerir que se viva numa voragem, aturdindo-nos de forma constante com o que quer que seja. Trata-se, apenas, de estarmos concentrados no momento, qualquer momento. E de sabermos que há sempre formas de tornar especial a banalidade do quotidiano. Porque nunca mais será hoje.

azuki
 
terça-feira, outubro 07, 2008
  Grande ecrã




Adaptação para o grande ecrã. www.lavouraarcaica.com.br

Filme brasileiro de 2001



Prémios:

- 2 prémios no grande prémio BR de cinema, nas categorias de Melhor Actriz (Juliana Carneiro da Cunha) e Melhor Fotografia.

- Melhor Filme;

- Melhor Direcção;

- Melhor Actor; (Raul Cortez; Selton Mello)

- Melhor Actor secundário (Leonardo Medeiros);.

- Melhor Actriz secundária (Simone Spoladore; Juliana Carneiro da Cunha);

- Melhor Roteiro;

- Melhor Banda Sonora;

- Melhor Direcção de Arte;

- Melhor Montagem;

- Melhor Som;

- Melhor Edição de Som

- Melhor Contribuição Artística, no Festival de Montreal;





Manuel Rodrigues
 
  pobre cabrinha
foto minha, algures na India

Schuda, paciente, mais generosa, quando uma haste mais túmida, misteriosa e lúbrica, buscava no intercurso o concurso do seu corpo.
"Lavoura Arcaica" (pag. 21), Raduan Nassar, Relógio D'Água

A lavoura é mesmo arcaica. Pobre cabrinha.

azuki
 
sexta-feira, outubro 03, 2008
  o filme

 
quinta-feira, outubro 02, 2008
 
«Depois de Lavoura arcaica, livro de estréia, de 1975, e de Um copo de cólera, novela de 76 páginas, Raduan se limitou a publicar um relato antigo, Menina a caminho, em 1994. No mais, se recolheu ao interior paulista e a sua vida de criador de galinhas. Silenciou. É um dos silêncios mais ruidosos da literatura brasileira. Duas novelas geniais, um conto, e mais nada. Por que fez isso? A pergunta é inútil, já que envolve o campo nebuloso dos segredos íntimos. Como leitores, contudo, temos o direito de fazer uma segunda pergunta: o que esse silêncio, esse sonoro não, significa?»

José Castello





Gostamos de autores problemáticos. Atrai-nos esta coragem, esta loucura suicida de agarrar a liberdade no seu limite: dizer não.



Mas gostamos de pensar, também, nos porquês. Será liberdade? Aceito... Mas será coragem ou cobardia?





É subjectivo. Talvez nem o próprio autor o saiba. E, mais ainda, será preciso uma grande dose quer de coragem quer de cobardia para abandonar esta escrita.





Conhecendo ao de leve o trabalho de criação de galinhas, quer dos pequenos galinheiros da aldeia dos meus avós, quer, de relanço, os aviários semi-profissionais do "Zé das Galinhas" de Macedo de Cavaleiros, imagino Nassar sem nada que fazer entre as rotinas matinais e vespertinas de alimentar e hidratar e cuidar da higiene e saúde dos caracacás.

Quero acreditar que tudo isto é ficção. Lá porque Nassar não publica livros, não quer necessariamente dizer que não os escreva. Mesmo que tenha anunciado claramente que desistiu da escrita. Terá a escrita desistido dele? Poderemos, daqui a uns anos, escrever notas sobre a continuação da história?



Escrever dois livros e receber toda a aclamação e prémios anuais deve ser assustador. Não que a gente se importasse que nos acontecesse, longe disso! Mas... deve ser assustador.



Eu, leitora, quero acreditar que haverá mais livros, estórias, romances, guardados para o futuro. E tenho esse direito, alimentar uma esperança infundade enquanto o futuro não chega.





belém
 
quarta-feira, outubro 01, 2008
  Raduan Nassar

[…] Raduan Nassar não suportou ser um grande escritor e desistiu da literatura para criar galinhas. Trocou a criação estética, que é complexa e desregrada, pela mecânica suave da avicultura, e parece muito satisfeito com isso, tanto que, resistindo a todos os apelos, se recusa a voltar atrás em sua decisão. Meteu-se assim em uma situação embaraçosa na qual o exterior (a figura do escritor) e o interior (o ato de escrever) se confundem, armadilha em que, de modo mais discreto, todos os escritores de alguma forma estão presos, e que não chega a configurar uma escolha, mas um destino. Raduan abandonou a ordem do verbo, que está sempre contaminada pelo vazio e pelo espanto, para retornar à ordem natural dos animais, que é mais silenciosa, mas também mais previsível. Ovos, poedeiras, rações, pequenas pestes podem ser controlados; a escrita, não.

O sucesso de seus dois primeiros livros,
Lavoura arcaica e Um copo de cólera, parece ter excedido em muito aquilo que Raduan esperava de si, e, ultrapassado pela própria obra, ele tomou a decisão de recuar. O sucesso, em seu caso, tornou-se uma carga: ele é aquele que não suporta vencer e, assim que a vitória se configura, precisa fracassar para se tornar menos infeliz. Restou a sombra de algo intolerável, a literatura, que, vista sem as pompas da reputação e da fama, tem a aparência de uma emboscada. Escrever não é só seguir uma rotina, manter-se atento e cumprir as regras dos manuais.

Mas por que terá Raduan, ao tomar a decisão de abandonar a literatura, conservado para si a imagem de escritor? Por que terá resolvido ser um homem com duas sombras — uma do escritor consagrado, outra do sujeito que desistiu de ser escritor? Raduan não é um Rimbaud, que, ao resolver que a escrita não o interessava mais, virou a página de sua biografia e, trocando de máscara, foi viver como um mercenário na África. Ao contrário, mesmo desistindo da literatura, ele não deixou de se apresentar, quase obstinadamente, como um escritor militante. Raduan é, ninguém tem dúvida, um grande escritor. Por isso, a solução que deu a seu impasse chega a parecer, às vezes, mentirosa. Quem estará dizendo a verdade: o Raduan que desistiu da literatura e se tornou só um homem silencioso com suas galinhas, ou o Raduan que, mesmo sem escrever, insiste em se ver como um escritor?
[…]

José Castello, "Inventário das Sombras", 1999
 

O QUE ESTAMOS A LER

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PROXIMAS LEITURAS

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LEITURAS NO ARQUIVO

"ULISSES", de James Joyce (17 de Julho de 2003 a 7 de Fevereiro de 2004)

"OS PAPEIS DE K.", de Manuel António Pina (1 a 3 de Outubro de 2003)

"AS ONDAS", de Virginia Woolf (13 a 20 de Outubro de 2003)

"AS HORAS", de Michael Cunningham (27 a 30 de Outubro de 2003)

"A CIDADE E AS SERRAS", de Eça de Queirós (30 de Outubro a 2 de Novembro de 2003)

"OBRA POÉTICA", de Ferreira Gullar (10 a 12 de Novembro de 2003)

"A VOLTA NO PARAFUSO", de Henry James (13 a 16 de Novembro de 2003)

"DESGRAÇA", de J. M. Coetzee (24 a 27 de Novembro de 2003)

"PEQUENO TRATADO SOBRE AS ILUSÕES", de Paulinho Assunção (22 a 28 de Dezembro de 2003)

"O SOM E A FÚRIA", de William Faulkner (8 a 29 de Fevereiro de 2004)

"EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO (Vol. I - Do lado de Swann)", de Marcel Proust (1 a 31 de Março de 2004)

"O COMPLEXO DE PORTNOY", de Philip Roth (1 a 15 de Abril de 2004)

"O TEATRO DE SABBATH", de Philip Roth (16 a 22 de Abril de 2004)

"A MANCHA HUMANA", de Philip Roth (23 de Abril a 1 de Maio de 2004)

"EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO (Vol. II - À Sombra das Raparigas em Flor)", de Marcel Proust (1 a 31 de Maio de 2004)

"A MULHER DE TRINTA ANOS", de Honoré de Balzac (1 a 15 de Junho de 2004)

"A QUEDA DUM ANJO", de Camilo Castelo Branco (19 a 30 de Junho de 2004)

"EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO (Vol. III - O Lado de Guermantes)", de Marcel Proust (1 a 31 de Julho de 2004)

"O LEITOR", de Bernhard Schlink (1 a 31 de Agosto de 2004)

"EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO (Vol. IV - Sodoma e Gomorra)", de Marcel Proust (1 a 30 de Setembro de 2004)

"UMA APRENDIZAGEM OU O LIVRO DOS PRAZERES" e outros, de Clarice Lispector (1 a 31 de Outubro de 2004)

"EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO (Vol. V - A Prisioneira)", de Marcel Proust (1 a 30 de Novembro de 2004)

"ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA", de José Saramago (1 a 21 de Dezembro de 2004)

"ENSAIO SOBRE A LUCIDEZ", de José Saramago (21 a 31 de Dezembro de 2004)

"EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO (Vol. VI - A Fugitiva)", de Marcel Proust (1 a 31 de Janeiro de 2005)

"A CRIAÇÃO DO MUNDO", de Miguel Torga (1 de Fevereiro a 31 de Março de 2005)

"A GRANDE ARTE", de Rubem Fonseca (1 a 30 de Abril de 2005)

"D. QUIXOTE DE LA MANCHA", de Miguel de Cervantes (de 1 de Maio a 30 de Junho de 2005)

"EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO (Vol. VII - O Tempo Reencontrado)", de Marcel Proust (1 a 31 de Julho de 2005)

...leitura livre... de leitores amadores (1 a 31 de Agosto de 2005)

UMA SELECÇÃO DE CONTOS LP (1 a 3O de Setembro de 2005)

"À ESPERA NO CENTEIO", de JD Salinger (1 a 31 de Outubro de 2005)(link)

"NOVE CONTOS", de JD Salinger (21 a 29 de Outubro de 2005)(link)

Van Gogh, o suicidado da sociedade; Heliogabalo ou o Anarquista Coroado; Tarahumaras; O Teatro e o seu Duplo, de Antonin Artaud (1 a 30 de Novembro de 2005)

"A SELVA", de Ferreira de Castro (1 a 31 de Dezembro de 2005)

"RICARDO III" e "HAMLET", de William Shakespeare (1 a 31 de Janeiro de 2006)

"SE NUMA NOITE DE INVERNO UM VIAJANTE" e "PALOMAR", de Italo Calvino (1 a 28 de Fevereiro de 2006)

"OTELO" e "MACBETH", de William Shakespeare (1 a 31 de Março de 2006)

"VALE ABRAÃO", de Agustina Bessa-Luis (1 a 30 de Abril de 2006)

"O REI LEAR" e "TEMPESTADE", de William Shakespeare (1 a 31 de Maio de 2006)

"MEMÓRIAS DE ADRIANO", de Marguerite Yourcenar (1 a 30 de Junho de 2006)

"ILÍADA", de Homero (1 a 31 de Julho de 2006)

...leitura livre... de leitores amadores (1 a 31 de Agosto de 2006)

POESIA DE ALBERTO CAEIRO (1 a 30 de Setembro de 2006)

"O ALEPH", de Jorge Luis Borges (1 a 31 de Outubro de 2006) (link)

POESIA DE ÁLVARO DE CAMPOS (1 a 30 de Novembro de 2006)

"DOM CASMURRO", de Machado de Assis (1 a 31 de Dezembro de 2006)(link)

POESIA DE RICARDO REIS E DE FERNANDO PESSOA (1 a 31 de Janeiro de 2007)

"OS MISERÁVEIS", de Victor Hugo (1 a 28 de Fevereiro de 2007)

"O VERMELHO E O NEGRO" e "A CARTUXA DE PARMA", de Stendhal (1 a 31 de Março de 2007)

"OS MISERÁVEIS", de Victor Hugo (1 a 30 de Abril de 2007)

"A RELÍQUIA", de Eça de Queirós (1 a 31 de Maio de 2007)

"CÂNDIDO", de Voltaire (1 a 30 de Junho de 2007)

"MOBY DICK", de Herman Melville (1 a 31 de Julho de 2007)

...leitura livre... de leitores amadores (1 a 31 de Agosto de 2007)

"PARAÍSO PERDIDO", de John Milton (1 a 30 de Setembro de 2007)

"AS FLORES DO MAL", de Charles Baudelaire (1 a 31 de Outubro de 2007)

"O NOME DA ROSA", de Umberto Eco (1 a 30 de Novembro de 2007)

POESIA DE EUGÉNIO DE ANDRADE (1 a 31 de Dezembro de 2007)

"MERIDIANO DE SANGUE", de Cormac McCarthy (1 a 31 de Janeiro de 2008)

"METAMORFOSES", de Ovídio (1 a 29 de Fevereiro de 2008)

POESIA DE AL BERTO (1 a 31 de Março de 2008)

"O MANUAL DOS INQUISIDORES", de António Lobo Antunes (1 a 30 de Abril de 2008)

SERMÕES DE PADRE ANTÓNIO VIEIRA (1 a 31 de Maio de 2008)

"MAU TEMPO NO CANAL", de Vitorino Nemésio (1 a 30 de Junho de 2008)

"CHORA, TERRA BEM-AMADA", de Alan Paton (1 a 31 de Julho de 2008)

...leitura livre... de leitores amadores (1 a 31 de Agosto de 2008)

"MENSAGEM", de Fernando Pessoa (1 a 30 de Setembro de 2008)

"LAVOURA ARCAICA" e "UM COPO DE CÓLERA" de Raduan Nassar (1 a 31 de Outubro de 2008)

POESIA de Sophia de Mello Breyner Andresen (1 a 30 de Novembro de 2008)

"FOME", de Knut Hamsun (1 a 31 de Dezembro de 2008)

"DIÁRIO 1941-1943", de Etty Hillesum (1 a 31 de Janeiro de 2009)

"NA PATAGÓNIA", de Bruce Chatwin (1 a 28 de Fevereiro de 2009)

"O DEUS DAS MOSCAS", de William Golding (1 a 31 de Março de 2009)

"O CÉU É DOS VIOLENTOS", de Flannery O´Connor (1 a 15 de Abril de 2009)

"O NÓ DO PROBLEMA", de Graham Greene (16 a 30 de Abril de 2009)

"APARIÇÃO", de Vergílio Ferreira (1 a 31 de Maio de 2009)

"AS VINHAS DA IRA", de John Steinbeck (1 a 30 de Junho de 2009)

"DEBAIXO DO VULCÃO", de Malcolm Lowry (1 a 31 de Julho de 2009)

...leitura livre... de leitores amadores (1 a 31 de Agosto de 2009)

POEMAS E CONTOS, de Edgar Allan Poe (1 a 30 de Setembro de 2009)

"POR FAVOR, NÃO MATEM A COTOVIA", de Harper Lee (1 a 31 de Outubro de 2009)

"A ORIGEM DAS ESPÉCIES", de Charles Darwin (1 a 30 de Novembro de 2009)

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