Leitura Partilhada
domingo, agosto 15, 2004
 
"Afinal, eu sabia por experiência própria que a vergonha nos força a ter um comportamento esquivo, defensivo, a ocultar e simular as coisas, inclusivamente a ferir os outros. Mas seria possível que a vergonha de não saber ler nem escrever explicasse também o comportamento de Hanna durante o julgamento e no campo de concentração? Que preferisse ser acusada de um crime a passar por analfabeta? Que cometesse um crime por ter medo de se mostrar analfabeta?
Quantas vezes, então, não me fiz e continuei fazendo essa mesma pergunta! Se o motivo da Hanna era o medo de ser desmascarada, por que razão é que em vez da exposição simples como analfabeta escolheu outro muito pior: como criminosa? Ou acreditava ela ser possível livrar-se daquilo sem ser desmascarada? Era simplesmente estúpida? E era tão fútil e má que se tornasse numa criminosa para evitar um desmascaramento?
Naquele tempo, e desde então, neguei-me a acreditar em tal coisa. Não, dizia eu para mim próprio, a Hanna não se decidiu pelo crime. Decidiu-se contra a promoção na "Siemens" e foi parar ao trabalho como guarda. E não, ela não enviava no transporte para Auschwitz as fracas e as débeis porque tinham lido para ela, mas havia-as escolhido para a leitura porque queria tornar-lhes mais suportável o último mês, antes de terem de voltar, impreterivelmente, para Auschwitz. E durante o julgamento não teve dúvidas na escolha entre passar por analfabeta ou por criminosa. Não fez cálculos nem traçou um táctica. Simplesmente, aceitou que iam castigá-la; só não queria, ainda por cima, ser exposta. Não velava pelos seus interesses: lutava pela sua Verdade, pela sua Justiça. E, porque tinha sempre de simular um pouco, porque nunca podia ser muito franca, nunca totalmente ela própria, eram uma verdade lamentável e uma justiça lamentável, mas eram as suas, e a luta por elas era a sua luta.

...

A Hanna continuou a lutar. Confessou o que era verdade e negou o que não era verdade. Negou com uma vêemencia cada vez mais deseperada. Não gritava. Mas a intensidade com que falava já chocava o Tribunal.
Finalmente desistiu.

...

Para ela, a sua imagem valia uns anos de cadeia?
Mas será que valia?"


Ela achou que sim.

............

Até que ponto estava Hanna consciente do seu crime? Quando ela pergunta se é importante saber quem escreveu o relatório, mostra a ignorância da extensão do dano, escapa-lhe o reconhecimento da fronteira. Até que ponto estava Hanna consciente da sua ignorância? Até que ponto estava Hanna consciente dos seus limites como pessoa? Até que ponto estava Hanna consciente do seu comportamento como ser humano?

Até que ponto estamos, nós espectadores, conscientes da sua verdadeira natureza?

............

Até que ponto estamos conscientes da nossa verdadeira natureza?

Li que era de Platão a seguinte frase( peço desculpa se não forem exactamente estas as palavras) :

"Se nós pudessemos ser invisíveis, seríamos todos assassinos"


A conclusão é que não estamos conscientes da verdadeira natureza de Hanna, nem sequer conseguimos realmente estar conscientes da nossa própria natureza, e é essa a razão porque esta leitura incomoda. Porque levanta questões para as quais não temos respostas exactas. E porque nos mostra um contorno da realidade que pura e simplesmente não estamos preparados para ver.

Troti

 

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