Leitura Partilhada
quinta-feira, janeiro 20, 2005
  A Veneza de George Sand
Porque tu és tão bela, ó Veneza, e por que te fazes tão minha amada, quando é certo não poder eu amar mais sobre a terra? Ó mármores sonoros, ecos da alegria, esbeltas abóbadas plenas de risos e de melodias, não sabereis vós, entre todos estes ruídos, apanhar e conservar um soluço abafado, um lamento lúgubre que me recorde ser preciso morrer?
Veneza, cidade louca, sempre branca, bela e risonha entre grilhões, não serás tu apenas um amontoado de muralhas que aprisionam indiferentemente os gemidos do desespero e os urros do deboche? Estará a voz dos moribundos muda para sempre debaixo das lajes húmidas onde passa o canal das prisões? E não é verdade que existe, sob o forro de chumbo do Palácio Ducal, uma voz lastimosa, um coro de espectros errantes que, de tempos a tempos, se eleva acima das fanfarras de Bucentauro e da algazarra do Carnaval? E a voz das máscaras enrouquecida pela bebedeira, não gelará ela por vezes, de repente, ao passar sob a ponte dos Suspiros, à hora em que a sombra de Faliero desce lentamente a escadaria dos gigantes e se senta, imóvel, no último degrau?
Veneza, Veneza, será que só sabes rir e cantar? Nada mais fazes do que dar voz à loucura, e os suspiros dos infelizes acabam por sucumbir nos teus flancos de mármore sem acordar os fantasmas de tantas dores, a memória de tantas e cruéis torturas sepultadas no te regaço misterioso!
Oh!, calai-vos, harmonias da noite! Fechai-vos, luminosas janelas de onde se escapam os acordes dos instrumentos e o espalhafato do baile! Arrebatadas violas, não percorreis assim todo o comprimento das sombrias paredes; canções napolitanas, não vos enredeis mais sobre as ondas do porto com as barcarolas da costa e com as baladas do Tamisa. Cala-te também tu, oboé melancólico, que pareces a voz de um amante mais feliz e mais reservado do que os outros. Perde-te lá em baixo, sob essas pálidas colunatas que envolvem a alvura húmida da lua. E tu também, suave cântico do pescador, apaga-te com o candeeiro que treme aos pés da Madona. Desce de trás dos minaretes de alabastro, lua libidinosa que pareces derramar volúpia e amor com as tuas ondas da tua débil luz, esconde-te atrás das nuvens escuras, abandona esses vapores de prata onde te ocultas como uma cortesã sob a sua mantilha transparente. És pois demais bela, ó Veneza, e é morrer duas vezes, morrer debaixo do teu céu.
As outras cidades são pilhas de pedras separadas por regatos de lama, habitadas por ruídos roucos e vozes discordantes. Nessas cidades, é lúgubre a noite, e as frias horas da aurora no Inverno convidam os infelizes a descerem ao túmulo. Quando o sono estende ainda as suas asas pesadas sobre os tectos enegrecidos, quando tudo se revela sombrio por dentro, uma voz pungente perdida na distãncia, um único som penetrante e plangente, formado por todos os ruídos do trabalho e da miséria que se brotam do campo, plana em torno dos pálidos horizontes e faz entrar o terror no coração do desafortunado que vigia e que duvida.
Por ti, Veneza, a única cidade criada, não pela mão, mas pelo espírito do homem, tu que pareces feita para servir de morada temporária às almas dos justos, e de degrau entre o céu e a terra, paredes habitadas por fadas e animadas ainda por um fôlego mágico, colunatas aéreas que tremeis na bruma, flechas ligeiras que vos confundis com os mastros indulantes dos navios, arcadas que bem poderíeis conter mil vozes para responder a cada voz que passa, miríades de anjos e de santos que pareceis saltar em cima das cúpulas e agitar as vossas asas de mármore e bronze quando a brisa sopra sobre as vossas frontes húmidas, Veneza que não jazes como um túmulo num terrenos sombrio e estéril, mas que pareces flutuar como um bando de cisnes sobre as ondas, cidade viva, paredes melodiosas que escutais e respondeis, lajes palpitantes sob o pé rápido dos amantes, varandas ressoantes de beijos, formas féericas, sombras andantes, reflexos capciosos, ondas sulcadas por fogos, noites sem sono, Invernos sem geada, festas sem fadiga, e sem amanhã, profundidade sem solidão, sem trevas e sem silêncio, ser imenso, vivo, sensível, veneza que foi amada e chorada como uma mulher, beleza que inflama os cérebros e que conquistou os amantes, deixa-me, não me digas nada, não me chames com as tuas mil vozes, não me inebries com as tuas mil formas de sedução, torna-te surda e muda para mim, ou então abre o teu passado aos milhares de cadáveres que a tua tirania enterrou e faz passar por debaixo das minhas janelas uma sangrenta procissão de fantasmas, uma terrível salmodia de gemidos, para que a morte me pareça justa e aceitável, a mim, que sou jovem, que podia ter sido feliz, que mereceria ser amada; a mim, que estou só, sem uma companhia, sem esperança, sem amor, a mim, que estou em Veneza e que vou morrer.

Diário Íntimo
, 1834

Talvez seja excessivo, copiar todo este texto, mas não consegui conter-me nem cortá-lo; não só por ser Veneza, por ser George Sand, por mostrar esta cidade ao mesmo tempo bela e asfixiante e fatal. por isso, se não lerem até ao fim, não faz mal, guardem para um dia em que passem por Veneza, carregados de emoção e de dor.

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