Leitura Partilhada
sexta-feira, agosto 17, 2007
  Trópico de Câncer, de Henry Miller
Isto não é um livro. É libelo, calúnia, difamação. Não é um livro na acepção corrente da palavra. Não. É um insulto prolongado, uma cuspidela na cara da Arte, um pontapé no cu de Deus, do Homem, do Destino, do Tempo, do Amor, da Beleza...do que quiserem.

A parte da cuspidela é que me aborrece. Para pôr em causa todas essas sacrossantas entidades que se escrevem com letra maiúscula e que estavam a merecer um abanão, Henry Miller (HM) poderia ter recorrido a outros métodos. Não gostei do livro e não gosto de HM. Nada do que procuro nos livros, seja iluminação, consolo ou evasão, eu consigo encontrar nesta cuspidela geral. Estou ciente dos argumentos, todos muito intelectuais e progressistas, mas não vale a pena. A única coisa relevante que me deu foi o significado da palavra rata, por volta dos meus quinze anos, já que é sempre bom conhecer as potencialidades do idioma. Nunca gostarei de HM porque o seu estilo me irrita e me fere a sensibilidade. Comigo, o escritor atingiu os objectivos.

Indiscutivelmente actual, no conteúdo e na forma, passados 70 anos. Libertador? Sim, num certo sentido. No sentido bulldozer do termo. Ele quer escandalizar e, pelo caminho, vai despedaçando. Libertador para as mulheres? Porquê? Porque não usa eufemismos e afirma repetidamente que uma mulher tem uma cona que não deveria ter vergonha de assumir e de usar? Pois eu não vislumbro mulheres neste livro, no sentido de mais do que meras detentoras de uma cona (que palavra horrível...), no sentido de mulheres inteiras, com trajectos, com projectos, com alma, com uma mente a funcionar. Vejo apenas grotescas representações de mulheres, seres desfeitos, perdidos, esfacelados, que ele manipula para se satisfazer. Se isto é ajudar as mulheres, vou ali e já venho.

Este livro foi permitido nos EUA, 30 anos após a sua publicação em França. Por aqui se percebe de que espécie de asfixia quis HM libertar-se e, sobretudo, que tipo de mentalidade pretendeu afrontar. Paris enche-lhe as medidas (no que é talvez a única demonstração de bom gosto do narrador), não só pela arquitectura e pela dimensão, mas porque é o melhor sítio do mundo, quando comparado com a América puritana. Ali, não há limites e tudo pode acontecer.

Talvez a sociedade não aguente, se deixarmos de ter medo das palavras. Muito menos, se deixarmos de ter medo das ideias. Ou da verdade (o que quer que isso signifique). Com uma clareza e uma agressividade absolutamente intencionais, o narrador não se coíbe de usar imagens cruas e vernáculo puro, e não pratica a auto-censura, admitindo os preconceitos (contra as mulheres, os judeus, os negros) e deixando bem nítida a ambivalência que sente pelo mundo. Cospe-nos, com o intuito de chocar, de fazer tremer os alicerces das consciências. Um Eu exuberante e odioso, fiel a si próprio, anuncia de forma caótica que pretende cortar amarras com o sistema e diz-nos: PISA O RISCO! Mas, o que deseja ele para si, enquanto ser humano? Uma certa forma de anarquia, de não-participação (na América, todos têm preocupações de produtividade e todos desejam vir a ser Presidente): tirar partido da vida, se possível aproveitando-se dos outros, como uma espécie de sanguessuga. Ele quer comer e foder.

Lendo HM, confronto-me com a evidência de que sou quadrada, muito embora, para salvaguarda da auto-estima, me surja a dúvida: serei velha demais (logo, quadrada) ou nova demais (não despertei para o mundo no anos sessenta)? Depois, ouço pessoas da minha idade a enaltecer o livro e percebo que sou mesmo quadrada. Uma passagem esclarece o tom, logo na primeira página: A noite passada, Boris descobriu que tinha chatos. Tive de lhe rapar as axilas e nem mesmo assim a comichão parou (a frase seguinte é tão bela que nem parece ser do HM). Estou muito solidária com o Boris e sei que um dos objectivos era demonstrar que de tudo se faz arte, mas também sei que não sou obrigada a gostar de uma arte que fala de chatos. Eu sei, sou quadrada.

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