Leitura Partilhada
quinta-feira, março 31, 2005
  A Miguel Torga
rente ao voo
as asas quebradas
ao desejo
de tocar a terra
e nela semear
a esperança

sentir
o pulsar dos homens
dobrados
ao rigor da jorna

e ser o que semeia
a liberdade
e renega a homenagem
o pedestal
a estátua

porém

grita
grita mais alto
que o desenho das pombas
cruzando os céus
para pousar na estrela
que brilha
no coração dos homens

e de súbito
o poema
como enxada
rasgando a alma
para que um dia o sonho se transforme
e habite a cidade humana


in "Cântico em Honra de Miguel Torga"
(Fora do Texto, Coimbra, Portugal, 1996)
in http://www.joaquimevonio.com

Troti
 
  O Sétimo Dia
Quanto a um Sétimo Dia, fontes próximas de Torga não descartam completamente a hipótese de ele vir a ser escrito. (JL, 03/Mar/1981)

Levo o sétimo Dia da Criação do Mundo atravessado no pensamento. Era o meu lavar dos cestos. O meu de profundis. Um cento de páginas ofegantes, impiedosas, sem contemplação comigo e com os mais. Mas talvez que o destino, desta vez, misericordiosamente, me tenha querido poupar a um tal desbordamento. Ao fim e ao cabo, fui sempre, em vários aspectos, um homem razoável. Incorformado, subversivo, mas com regras de afecto e civilidade. E caridoso, afinal. Pouco comigo, é certo, mas o bastante com os amigos, com os inimigos e o resto da humanidade. Por que havia de deixar de mim, plasmada, a imagem macerada e penitente de um poeta a sangrar, e a acusação magoada dos que não me puderam compreender ou me ofenderam? Assim, fica o silêncio a cobrir estes dias finais como um manto negro e compassivo de pudor e esquecimento. (Diário XVI, dia 20/Set/1990)

azuki
 
  bom dia!
Hoje tivemos direito a um doce matinal. Casualmente (obrigada, motores de busca) veio a nosso encontro um leitor que dedicou os últimos dias à Criação do Mundo, tal como nós. Escreveu-nos assim:

Também eu estive a ler a Criação do Mundo. Convosco, sem o saber. E que bom foi sabê-lo. Esta Páscoa, para mim que não sou crente, teve um sabor algo mágico. Natural. O meu Segundo Dia torguiano.
Claro que não me voltam a apanhar 'desprevenido'. Contam comigo doravante, para uma leitura que também pode ser partilhada.

Ponto de encontro aqui, então. Para a próxima coincidência de leituras, teremos mais comentários, mais troca de notas e destaques - pelo menos assim o esperamos.

Um outro sublinhado, com alguma inveja:

terminei... ontem, 29 de Março, às 8 e meia da manhã, no nevoeiro da Serra, para onde 'fiz questão' de levar a leitura das últimas páginas.

Muito oportuno... A mim a leitura deu-me tanta saudade do Rio e Minas no Brasil, das Serras em Portugal. (Azuki, não me fales dos frescos italianos, por favor...) Imagens destas páginas serão por mim tranportadas para muitas das próximas viagens, reais ou imaginadas.

leitora
 
 
“Há um fatalismo na condição humana.”
( V – p.161)

Troti
 
 
"Sem tempo e sem força para ir mais longe na caminhada"

Miguel Torga

Troti
 
  De tanto o que dissera, o que ficara dito?
Um homem – no fim da vida – e ainda cheio de forças para perguntar, questionar – a si mesmo – e quase mais do que na juventude.

Algo que era o mistério da minha própria identidade e que nunca se deixara revelar nem no silêncio nem no eco das palavras.

nastenka-d
 
  Agarez à espera
Depois de ler A Criação do Mundo é inevitável desejar Agarez. Ver as pedras, a escola, a terra, o que sobra da sua traça antiga, visitar a Fundação Miguel Torga.

Não posso evitar um convite antecipado para quem leu o livro e nos foi acompanhando: rumemos a São Martinho de Anta. Quem sabe numa segunda saída de campo, num sábado das próximas semanas... Planeamento iniciado. Notícias em breve...


leitora
 
quarta-feira, março 30, 2005
 
E, afinal, chegava ao termo da viagem na mais profunda escuridão. Em vez da transparência almejada, deparava com a negrura de um enigma.
...
Sim, a vida ia continuar. Outros dias viriam cheios de sol, de flores e de frutos. Mas não seriam meus.”

( V – p.197/198)

Troti
 
  A voz impossível
"Algo de medular se quedara irredutivelmente calado para além e para aquém da amálgama de ideias, perplexidades, protestos, revoltas, paixões, que formavam como que uma crosta de obstinação á volta dum magma de angústia. Algo que era o mistério da minha própria identidade e que nunca se deixara revelar nem no silêncio nem no eco das palavras.”
( V – p.197)

Troti
 
  Carta de Sophia à filha de Torga
Lisboa, Fev 95

Querida Clara:

Do coração a acompanho no seu grande desgosto com muita tristeza e muita saudade. De longe, à minha maneira, tenho partilhado o seu luto.
Todos estes dias tenho estado consigo porque incessantemente tem passado em minha frente um rio de memórias.
Desde aquele dia dos meus anos em que logo de manha recebi, mandado por um amigo, o 1º volume do Diário e li o primeiro poema:
“Deixem passar quem vai na sua estrada”.
Logo nesse momento reconheci a voz única, inconfundível e quando tempos depois conheci o seu Pai verifiquei que essa era a sua própria voz.
Porque ele era um com os poemas que escrevia.
Por isso agora revejo os gestos, as atitudes, a maneira de falar. Havia nele o aprumo e a nobreza de um homem ligado às suas raízes – e simultaneamente um poeta para que o estar e o viver também eram uma poética.
Querida Clara sei quanto se sofre nestes momentos em que a ausência começa. Não podemos entender nada – só podemos confiar.
Mas a Clara tem a grande consolação de saber que o seu Pai é alguém que se disse a si próprio, que ele vive na obra que escreveu e que essa obra é a sua identidade, o seu mundo, a sua voz, o seu amor pelas coisas. Que continuam a estar connosco e com as gerações futuras.
Querida Clara acredite que de longe me sinto muito perto de si, com muita tristeza e muita saudade.
Um beijo

Sophia de Mello Breyner Andresen
http://www.esec-aurelia-sousa.rcts.pt/torg.htm


Troti
 
terça-feira, março 29, 2005
 
“...assistia ao espectáculo degradante de um mundo massificado e agressivo, que confundia a liberdade com o seu desejo irresponsável de permissividade e impunidade, inacpaz de reconhecer na arte qualquer significação perene e sagrada.”
( V – p. 196)

Troti
 
 
Que grandeza tinha o passado? Que significação tinha o presente? Que sentido tinha o futuro?

nastenka-d
 
segunda-feira, março 28, 2005
 
“ ...a minha vida, em vez de um esforço tenaz e apaixonado de coerência e rebeldia, era um rol desconexo de instantâneos absurdos.”
( V – p.189)

Troti
 
 
“Estava escrito que nunca seria o dono feliz dos meus actos.”
( V – p.187)

Troti
 
 
“O remédio era, portanto, continuar, na dorida melancolia de quem sabe que já não pode corrigir os erros cometidos nem cometer outros, e na cruciante certeza de que, quando chegasse o momento da partida, nenhum problema ficaria resolvido. Os permanentes acenos de Deus nunca atendidos, os sonhos maiores nunca plasmados, os sentimentos mias íntimos nunca correspondidos.
Tinha isso, a idade...Que fizera eu da vida? Um rosário de contradições insanáveis. O homem, que por fora parecia um monolito de certezas, por dentro era uma amálgama de dúvidas. Sedento do absoluto, só conhecera o gosto amargo do relativo.”

( V – p.185)

Troti
 
 
“O remédio era, portanto, continuar, na dorida melancolia de quem sabe que já não pode corrigir os erros cometidos nem cometer outros, e na cruciante certeza de que, quando chegasse o momento da partida, nenhum problema ficaria resolvido. Os permanentes acenos de Deus nunca atendidos, os sonhos maiores nunca plasmados, os sentimentos mias íntimos nunca correspondidos.
Tinha isso, a idade...Que fizera eu da vida? Um rosário de contradições insanáveis. O homem, que por fora parecia um monolito de certezas, por dentro era uma amálgama de dúvidas. Sedento do absoluto, só conhecera o gosto amargo do relativo.”

( V – p.185)

Troti
 
 
“Vencera...em mim, a herança genética do ramo acomodado e diligente de Agarez. E cavara anos a fio como um cavador honrado e responsável. Mas havia momentos em que um surto de inconsequência abalava o espartano rigor desse quotidiano disciplinado. Consentia então aos sentidos exaltações solares, saím-me da boca respostas inopinadas e paradoxais que desarmavam a lógica formalizada dos interlocutores, ou dava comigo a voar absurdamente nas asas do absurdo. Só que não sabia quem verdadeiramente estava a ser quando assim me desmandava. O rosto não via a imagem. Nem mesmo com um espelho cristalino diante dos olhos.”
( V – p.184)

Troti
 
 
Agarez!... O apego das raízes ao chão nativo! Depois de tantas andanças, de tanto sofrimento, de tanto estudo, o coração umbilical continuava ligado à matriz. Tinha, realmente, uma paisagem, um meio, um sítio geográfico vital gravado nos cromossomas! O corpo podia correr todos os caminhos do mundo, e o espírito voar em todas as direcções. Aonde chegassem, denunciariam sempre a marca da origem, a singularidade inconfundível, espécie de sabor à terra de proveniência, como o dos frutos.

azuki
 
domingo, março 27, 2005
 
“Incapazes de qualquer curiosidade integradora, só conhecíamos em relação ao nativo duas atitudes: a distãncia ou a promiscuidade. Em vez de tentarmos compreender a significação de certas singularidades da sua vida quotidiana, o seu matriarcado, a sua poligamia, o seu nomadismo, o seu panteísmo religioso, o seu tribalismo, as suas festas fúnebres e os seus rituais, de nos esforçarmos por decifrar nas suas máscaras os mistérios que nelas se ocultam, de procurarmos interpretar o esoterismo das suas feitiçarias e a alucinação dos seus batuques, íamos às senzalas satisfazer apenas a fome dos sentidos. Que escolas havia na metrópole a ensinar ao mundo uma antropologia abissal dos povos – negros, islâmicos, judaicos – que o destino nos dera por companheiros na via sacra da História? Onde estava uma literatura digna de tal nome que fosse a cristalização deslumbrada desses encontros cruciais de raças e sangues?”
( V – p.175/176)

Troti
 
 
“Havia subjacente a cada ordem dada e a cada ordem cumprida, a surda tensão de dois racismos em confronto. No máximo, uma certa afectividade temperamental concedia ao negro a precária dignidade de criatura inferior, primária, infantil, incapaz de progresso, sempre necessitada de paciência e castigo.”
( V – p.169)

Troti
 
 
“Viera na expectativa de encontar a imagem específica de um modo português de estar em África, expressa na trama de um espaço urbano condizente. E deparava com uma arquitectura arbitrária e sem alicerces no passado, dimensionada à triste altura das irredutabilidades humanas do presente. O nosso génio perdera no egoísmo de semelhantes absurdos o sentido da sua verdadeira grandeza.”
( V – p.167)

Troti
 
 
“ A ditadura continuaria como dantes, apenas em banho-maria.”
( V – p.163)

Troti
 
 
“ Fora esse, de resto, o maior crime do defunto. Dessorara de tal modo as consciências que as tornara incapazes de qualquer reacção, viesse o estímulo de onde viesse. O corpo da nação parecia inerte. Nenhum abalo, físico ou metafísico, o acordava da letargia em que mergulhara. De norte a sul do país ninguém vivia verdadeiramente. Todos vegetavam. A ordem imposta ao vulção colectivo pelo tenaz e frio ordenador da sua actividade apagara-lhe o fogo interior. Cessaram, realmente, as erupções; mas deixara de haver também palpitação humana numa terra humana. E os tempos futuros, mesmo na sua indeterminação, anunciavam-se fatalmente herdeiros da mediocridade do presente.”
( V – p.160/161)

Troti
 
  Uma Casa Portuguesa
Aparentemente simples, mas altamente revelador…. Este é um bom retrato daquilo que Salazar pensava para a sociedade portuguesa:

Numa casa portuguesa fica bem
pão e vinho sobre a mesa.
Quando à porta humildemente bate alguém,
senta-se à mesa co'a gente.
Fica bem essa fraqueza, fica bem,
que o povo nunca a desmente.
A alegria da pobreza
está nesta grande riqueza
de dar, e ficar contente.

No conforto pobrezinho do meu lar,
há fartura de carinho.
A cortina da janela e o luar,
mais o sol que gosta dela...
Basta pouco, poucochinho p'ra alegrar
uma existência singela...
É só amor, pão e vinho
e um caldo verde, verdinho
a fumegar na tigela.

Quatro paredes caiadas,
um cheirinho á alecrim,
um cacho de uvas doiradas,
duas rosas num jardim,
um São José de azulejo
sob um sol de primavera,
uma promessa de beijos
dois braços à minha espera...
É uma casa portuguesa, com certeza!
É, com certeza, uma casa portuguesa!


azuki
 
 
Tinha isso, a idade. Se não entorpecia de todo o entendimento, tornava-o clarividente.

nastenka-d
 
sábado, março 26, 2005
 
Antecipava-me às desilusões agindo sem qualquer ilusão...Encarava as coisas e as pessoas com outra lucidez.”
( V – p. 144)
...
De casa para o consultório e do consultório para casa, parecia uma lançadeira de desilusões.”
( V – p.154)


Troti
 
  ...de novo, Portinari
A imagem estática do Brasil dramático e nocturno dos tempos idos fora substituída pela de uma grande nação dinâmica e solar.Nas telas de Portinari (...) o próprio sofrimento tinha esperança. Era com essa certeza numa incomensurável pátria futura que queria dizer adeus àquela terra que agora sentia ainda mais chegada à alma. (V Dia, pag. 547)

azuki
 
sexta-feira, março 25, 2005
 
“Todas as idades tinham o seu estatuto natural, e ser-lhe fiel é que constituía para mim a nobreza de existir...Uma ruga a testemunhar honradamente a relha do tempo enchia-me de respeito e ternura.”
( V – p.141)

Miguel Torga teria grandes desgostos neste século XXI, onde os rostos gostam de ser clones plastificados.

Troti
 
 
“Continuava cada vez mais convencido de que o homem, embora condenado a um destino social, começava por ser um indivíduo. Dizia-mo o entendimento e mostrava-mo diariamente a prática médica. Anos e anos de experiência clínica tinham-me ensinado a ver sempre em cada criatura a solidão irremediável que ela é nos momentos cruciais. Nascia-se sozinho, sofria-se sozinho, morria-se sozinho, por muito amor e solidariedade que houvesse no mundo.”
( V – p.140)

Troti
 
 
”De geração para geração a moral ia mudando. Maneiras condenadas num dia, no seguinte entravam na rotina. Actos ainda ontem praticados em transgressão, eram-no hoje em permissividade. E o curioso é que não se notava qualquer alegria no rosto dos beneficiados. Pelo contrário. Cada vez pareciam mais tristes. Libertos de mil peias, com todos os caminhos do prazer abertos, no fundo viviam murchos, como que desempregados da vida.”
( V – p.139)

Troti
 
  O Sexto Dia
"O Sexto Dia traz o escritor até ao 25 de Abril, mas não sem uma última demão no perfil do «tirano» entre todos desdenhado: Dessorara de tal modo as consciências que as tornara incapazes de qualquer reacção, viesse o estímulo de onde viesse. O corpo da nação parecia inerte. Nenhum abalo, físico ou metafísico, o acordava da letargia em que mergulhara. De norte a sul do País ninguém vivia verdadeiramente. Todos vegetavam. A ordem imposta ao vulcão colectivo pelo tenaz e frio ordenador da sua actividade apagara-lhe o fogo interior.

Com a queda de Caetano as cadeias abriram-se, a Censura foi abolida, os direitos individuais restabelecidos, a Pátria readquiria finalmente, a voz e a dignidade. Também a consciência dolorosa do abismo que descera.

O Exército, que durante quase meio século havia apoiado o tirano, e depois o sucessor, cansado de uma guerra que não podia vencer, e roído por contradições várias de que nem sempre suspeitava, transformara-se de repente em campeão da democracia. Mas o 25 de Abril, a esperança do renovo, foi sol de pouca dura. Passado o momento de euforia, a realidade voltou negra e desalentadora: as prisões encheram-se de novo, as ambições recalcadas vieram à tona, os lugares pingues foram assaltados, a mediocridade instalou-se, uma má consciência de efeitos retroactivos começou a roer-nos." (JL - 1981)

azuki
 
  Confidencial
Não me perguntes, porque nada sei
da vida,
nem do amor,
nem de Deus,
nem da morte.
Vivo,
amo,
acredito sem querer,
e morro, antecipadamente
ressuscitado.
O resto são palavras
que decorei
de tanto as ouvir.
E a palavra
é o orgulho do silêncio envergonhado.
Num tempo de ponteiros, agendado,
sem nada perguntar,
vê, sem tempo, o que vês
acontecer.
E na minha mudez
aprende a adivinhar
o que de mim não possas entender.


MIGUEL TORGA
in " diário XVI"


Troti
 
  Corte na Aldeia
recupera como mote o amor de Torga à sua terra:

“…Hoje
Sei apenas gostar
Duma nesga de terra
Debruada de mar.”

Numa época em que é moda ou piroseira andar de bandeira das quinas desfraldada, que relação teremos, de facto, com esta terra?

leitora
 
  Na Vila Dianteira
António propõe o poema Certeza, de Miguel Torga:

Sereno, o parque espera
Mostra os braços cortados,
E sonha a Primavera
Com seus olhos gelados.

É um mundo que há-de vir
Naquela fé dormente;
Um sonho que há-de abrir
Em ninhos e sementes.

Basta que um novo Sol
Desça do velho céu,
E diga ao rouxinol
Que a vida não morreu.

leitora
 
  Na Foz
JJ transcreve parte do Diário de Torga:

Coimbra, 4 de Março de 1964
Tanto se lamentou a meu lado, que, com razões para queixumes dobrados, pus-me a fazer de optimista. Se não podia trocar os sinais à realidade, podia, medicamente, anestesiar as chagas do presente com o bálsamo do porvir. E prometi-lhe a serenidade futura numa pátria sem cangalheiros, ideal que ele ajudaria a construir. A mocidade é crédula. Ou faz-se. Quem perdeu ainda a fé de chegar, fia-se em qualquer tabuleta indicadora. Segue-se que lá o adormeci ao som da viola encantatória, com o bordão da esperança sempre a vibrar em cheio. A velhice sabe embalar...


Partilho de um certo sentimento de ambivalência em relação a Torga. Mas cada vez mais me parece que tem de ser lido, relido. Muito do que escreveu merece perdurar na nosssa memória social e pessoal.

leitora
 
  Portugal
Guida Alves vê, ouve e lê este poema de Torga:

Portugal
Avivo no teu rosto o rosto que me deste,
E torno mais real o rosto que te dou.
Mostro aos olhos que não te disfugura
Quem te desfigurou.
Criatura da tua criatura,
Serás sempre o que sou.
E eu sou a liberdade dum perfil
Desenhado no mar.
Ondulo e permaneço.
Cavo, remo, imagino,
E descubro na bruma o meu destino
Que de antemão conheço:
Teimoso aventureiro da ilusão,
Surdo às razões do tempo e da fortuna,
Achar sem nunca achar o que procuro,
Exilado
Na gávea do futuro,
Mais alta ainda do que no passado.

Coimbra, 16 de Dezembro de 1963

leitora, ao encontro de Torga na blogosfera deste mês...
 
  Recomeçar
Reflexos da Ritinha, recupera estas palavras de Torga:

"Recomeça... se puderes, sem angústia e sem pressa e os passos que
deres, nesse caminho duro do futuro, dá-os em liberdade, enquanto
não alcances não descanses, de nenhum fruto queiras só metade."

Recomeça-se todos os dias, embora nem sempre pareça...

leitora
 
  Aos Poetas
No Abrigo de Pastora, Laurindinha transcreve mais um poema de Miguel Torga. É bom encontrar Torga na blogosfera.

leitora
 
  Nada valia a pena, embora tudo tivesse de ser feito como se valesse
.
nastenka-d
 
quinta-feira, março 24, 2005
 
“Verificava, de resto, que dia a dia ia caminhando cada vez mais para um lúcido e animoso desencanto, em tudo oposto à cegueira inconsequante e opiniosa de outrora. Colhia na mesma – quando colhia – as rosas da vida, mas a saber que não as havia sem espinhos e que murchavam na manhã seguinte.”
( V – p.126)

Troti
 
  need I say more
Os escândalos não transpiravam, os crimes ficavam abafados, os próprios suicídios figuravam nos noticiários como mortes acidentais.

nastenka-d
 
  need I say more?
A nação inteira era agora uma tumba de silêncio e abulia.

nastenka-d
 
quarta-feira, março 23, 2005
 
“A imagem estática do Brasil dramático e nocturno dos tempos idos fora substituída pela de uma grande nação dinãmica e solar. Nas telas de Portinari, nos versos de Manuel Bandeira e de Drummond de Andrade, ou na prosa de Graciliano Ramos o próprio sofrimento tinha esperança.”
( V – p.123)

Troti
 
 
“Nunca as imagens da infância coincidem com a realidade adulta.”( V – p.117)

Troti
 
  O homem é a consciência que tem dos seus passos
Era imperdoável que se mantivesse o ignorante na ignorância, a forma mais fácil e barata de perpetuar o regime. E, no meio de tudo isto, o nosso querido líder (soa-me a algo estranho...), a dar o nome às pontes, praças e hospitais, e a presença obsessiva do seu retrato nas escolas, repartições e tribunais… Impedir pessoas de exercer a sua profissão, perseguir, ameaçar, estupidificar, colocar todo um povo ao serviço dos caprichos de um homem, dar a cada cidadão apenas a possibilidade de vir a ter uma vida muito pequenina..

azuki
 
terça-feira, março 22, 2005
  Nenhum homem pode ficar indiferente à sua mutilação
Sim, se tiver consciência da mutilação…. Pelo menos nas primeiras décadas do regime, a verdade é que quase ninguém passava os dias a pensar que tinha a alma mutilada (com as excepções do pós-guerra e da união das esquerdas em torno de Humberto Delgado, em 1958). Talvez que muitas das perigosamente subversivas associações de estudantes fossem meia dúzia de jovens que achavam o máximo cultivar o secretismo e convocar reuniões conspirativas. Não faziam grande mossa ao regime, mas era emocionante. E não deixava de ser um princípio de qualquer coisa… (a partir de 1962, multiplicaram-se as invasões das universidades pela polícia, os saques da associações de estudantes pela PIDE, os despedimentos sumários, de que é exemplo a mulher de Torga...).

Ninguém se sentia seguro na sua razão, nos seus direitos, nos seus sentimentos. Todos diziam sem dizer, aplaudiam sem aplaudir, aprovavam sem aprovar. As manifestações eram organizadas, os plebiscitos fabricados, os entusiasmos exigidos. O medo paralisara as vontades e automatizara os movimentos do corpo e da alma.Um regime que persegue o espírito das mais variadas formas é um regime indigno. E nenhum povo deveria ficar indiferente à sua mutilação intelectual. Uma lógica securitária (embora, estranhamente, se visse pouca polícia na rua, porque a repressão era feita de forma subterrânea; a verdade é que, nem em casa, as pessoas se atreviam a fazer certos comentários em voz alta...), a simpática polícia dos costumes, um Estado longe das pessoas, uma ideologia medíocre, um tirano que punha toda uma Nação ao seu serviço, mesmo depois de ter caído da cadeira; havia os livros permitidos e os livros proibidos e a habituação permitia que se olhasse para essas estantes algo particulares com grande à vontade!; livros proibidos, pelo regime e pela igreja, um misto de pecado e de rebelião…

Os atropelos que a avidez do mando era capaz de fazer em nome da ordem, da civilização cristã, dos valores morais, da pátria e de quejandas altissonâncias!

azuki
 
 
“A doença! Continuava a ser para mim um enigma que não conseguia decifrar. Falta de saúde – ensinavam os dicionários. Muito obrigado. Até aí chegava eu, sem o auxílio de muletas. Queria era ir mais além, desatar o nó cego de um mistério que nenhum estudo, nenhuma prática, nernhuma vivência esclarecem
( V – p.105)

Troti
 
  A Inquisição que os anos 30 ensinavam
A Inquisição teve largas consequências sociais e políticas entre nós: consolidou o poder dos monarcas; evitou as lutas religiosas, que se prolongaram por vários anos em muitos países, com destruições, saques, roubos, assassinatos e misérias de toda a espécie, como aconteceu na Alemanha, na França, na Inglaterra, nos Países Baixos, etc; concorreu para a formação da unidade nacional, pelo desaparecimento do grupo judaico, irredutível aos nossos costumes, elemento constante de desordens e de mal-estar do povo; evitou as reivindictas populares, com todas as violências a que davam lugar; acabou com as discórdias intestinas, nascidas da diversidade de crença; revigorou a Fé religiosa, que havia presidido ao nascimento da nacionalidade e tinha dado origem à nossa formidável expansão externa; libertou a sociedade de muitos elementos imorais, pela acção que teve na manutenção dos bons costumes; etc.

(António G. Mattoso, Compêndio de História de Portugal, aprovado oficialmente como livro único para o 6º ano dos liceus, 1938)

azuki
 
segunda-feira, março 21, 2005
  Portinari
«Nas telas de Portinari, nos versos de Manuel Bandeira e de Drummond de Andrade, ou na prosa de Graciliano Ramos o próprio sofrimento tinha esperança.»

Eu rendi-me a Portinari ao primeiro olhar, muito recentemente. Surpresa inesperada, que estranhamente me estava reservada no sou país natal, e que nunca pudera apreciar por estas bandas. Distracção minha, ou de facto Portinari é pouco divulgado pelos lados da Europa?











(voltarei a Portinari daqui a uns meses, a propósito da sua série sobre Dom Quixote - não vale espreitar.)


leitora
 
 
“Escrevia com tal dificuldade, e considerava tão precário o resultado desse esforço desmedido, que o juízo negativo dos outros ficava aquém do meu. A insatisfação transformava em pecado mortal cada obra que publicava.”( V – p.100)

Troti
 
 
“Esse sentimento profundo do nada irremediável a que o homem estava condenado, velho em mim, tornou-se obsediante a partir daí, e agravava a visão pessimista do mundo, que sempre tivera, e que a aparência voluntariosa disfarçava. Costumava dizer que era um homem de esperança desesperançado. O que poucos compreendiam.”
( V – p.96)

Troti
 
 
“Agora a mão sinistra tocara carne de que eu era carne. Sabia que nunca mais voltaria a ser o mesmo. Fora atravessado por um relâmpago negro.”
( V – p.95)

Troti
 
 
“...tudo diante da morte era insólito. A própria vida.”
( V – p.93)

Troti
 
  Praticar a farsa, cultivar a mediocridade
A orquestração da verdade oficial, realizada através dos vários meios de comunicação ao serviço do poder, acabara por destruir nas mentes o sentido crítico, a apetência da análise e do julgamento. Em vez de naturezas pensantes, seres vegetativos. Quando havia um ajuntamento de natureza política, punham o povo todo em camionetas, davam-lhe bandeirinhas, se calhar 25 tostões a cada um e, no dia seguinte, lá aparecia a manchete: “Grande manifestação…”. Tudo era manipulado, tudo era orquestrado. O escândalo do analfabetismo e da pobreza: as pessoas vinham das aldeias vender nas feiras descalças… até passou a haver uma lei que proibia andar descalço!! E inventou-se um calçado porreiro, os socos, óptimos quer para o verão, quer para o Inverno, e baratinhos…

azuki
 
domingo, março 20, 2005
 
«embora precária, só a arte valia realmente a pena.»

Tenho de admirar esta paixão, esta força. Este sentido de missão.

Provavelmente pertenço a toda uma geração desapaixonada e egoísta. Uma massa de pessoas que se recusa. O desânimo é autocomplacente. Chamam-lhe sistema, por exemplo. Mas podiam chamar-lhe muitos nomes menos bonitos e abstractos.

leitora
 
 
“corria Seca e Meca, numa aprendizagem nunca acabada da realidade pátria, que descrevera já de mil maneiras e continuava a estudar incansavelmente. Precisava cada vez mais de enraizar a inspiração no húmus nativo. O que escrevia ficava insípido sempre que lhe faltava o sal da terra.”
( V – p.79)

Troti
 
 
“No fundo, só no idioma materno reconhecia a minha voz”
( V – p.77)

Troti
 
  Livros Proibidos nos Últimos Tempos da Ditadura
azuki
 
  Os livros e a censura em Portugal


...a lista vai de Maria Lamas e Rodrigues Lapa a Urbano Tavares Rodrigues – preso três vezes –, de Alves Redol, Alexandre Cabral, Orlando da Costa, Alexandre O´Neil, Alberto Ferreira e António Borges Coelho a Virgílio Martinho, António José Forte e Alfredo Margarido ou os mais novos Carlos Coutinho, Carlos Loures, Amadeu Lopes Sabino, Fátima Maldonado, Hélia Correia e Raul Malaquias Marques. Augusto Abelaira, Manuel da Fonseca e Alexandre Pinheiro Torres estiveram igualmente detidos às ordens da PIDE em 1965, na sequência da atribuição do prémio da Sociedade Portuguesa de Escritores ao romance Luuanda, do angolano Luandino Vieira. Abelaira, Fonseca e Torres integravam o júri que decidiu o prémio a Luandino, preso no Tarrafal, e a SPE foi assaltada e extinta. Julgados em plenário foram ainda, por causa do livro Poesia Erótica e Satírica, Natália Correia, Ary dos Santos, Mário Cesariny, Ernesto Melo e Castro, Luiz Pacheco e o editor Fernando Ribeiro de Melo. Condenados com multas e prisão remível. Os dois últimos voltaram ao plenário para outro julgamento, o da tradução e publicação da Filosofia na Alcova, de Sade, que juntou no mesmo processo Herberto Helder e o pintor João Rodrigues. Condenados também com multas e prisão remível. Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa desceram por sua vez à barra do tribunal por causa das Novas Cartas Portuguesas. Absolvidas, já depois do 25 de Abril, embora o julgamento, evidentemente, tivesse começado antes. Nesta mistura de política e atropelos vários, Luiz Pacheco e Mário Cesariny são dois casos em destaque. Pacheco, como ele próprio recorda, esteve pela primeira vez preso em 1947 no Limoeiro, acusado de estupro. Foi condenado na Boa-Hora a pena suspensa. Voltou ao Limoeiro em 59, desta vez sob acusação de atentado ao pudor. Foi absolvido. De novo na cadeia em 68, por rapto e estupro. Desta vez foi condenado a meses de prisão efectiva, que cumpriu nas Caldas na Rainha e no Limoeiro. Cesariny envolveu-se em 1960 em “actos imorais”. Obrigado a residência fixa, tinha de se apresentar todos os meses na Polícia Judiciária. (...) Esteve preso por menos uma outra vez, em Paris, em 1964, acusado de “ultraje público ao pudor". (José Amaro Dionísio, "Escritores na Prisão")

azuki
 
sábado, março 19, 2005
 
Não sei quantos seremos, mas qu'importa?!
um só que fosse e já valia a pena.
Aqui,no mundo, alguém que se condena
A não ser conivente
Na farsa do presente
Posta em cena!

Não podemos mudar a hora da chegada,
Nem talvez a mais certa,
A da partida.
Mas podemos fazer a descoberta
Do que presta
E não presta
Nesta vida.

E o que não presta é isto,esta mentira
Quotidiana.
Esta comédia desumana
E triste,
Que cobre de soturna maldição
A própria indignação
Que lhe resiste.



Miguel Torga: "Camara Ardente", 1962

Troti
 
 
«Havia um hiato estranho dentro de mim. Uma espécie de esquecimento parcelar da realidade...»


leitora
 
  A Morte de Salazar
A nação inteira passou, sem qualquer sobressalto, de respirar monotonamente com ditador, a respirar monotonamente sem ele.(Miguel Torga – Diário, dia 27/07/1970)

azuki
 
 
“Desde menino que tinha da vida um sentido agónico, cada dia, cada hora, cada minuto à espera da morte. Mil razões, até de natureza fisiológica, justificavam esse sentimento quotidiano. Mas diante das grandes ruínas é que via claramente como eram vãos os sonhos de qualquer perenidade. Apesar de tudo, tirava da peregrinação um ensinamento: embora precária, só a arte valia realmente a pena.”
( V – p.72)


Troti
 
 
“Nenhuma ideologia negava com fundamento a Capela Sistina ou a praça de S. Marcos. Nenhuma prepotência desmentia os mosaicos de Ravena ou a catedral de Amiens. Inexorável e alheio a todas as inquietações e conflitos, só o tempo. Foi nas ruínas de Pompeia e de Paestum que lhe senti mais ao vivo as garras mortais. Aí é que se patenteava em toda a sua força o cepticismo melancólico do versículo do Eclesiastes, que agora não me saía do pensamento:
Nada há de permanente debaixo do sol...

( V – p.71)

Troti
 
  Simpatizo mais com este homem
Havia em cada um de nós um actor capaz de representar os mais inverosímeis papéis. O que não impedia que nos recusássemos a desempenhar alguns.

Porque é que ele me agrada?
Deixou de ter necessidade de (se) afirmar em cada atitude, em cada escolha, independentemente de qualquer circunstância – e isto não o diminui, antes pelo contrário: dá-lhe humanidade, torna-o mais próximo e amável sem lhe tornar retorcido o carácter.
nastenka-d
 
sexta-feira, março 18, 2005
  os filhos
«Sentia mais apreensão pelo destino dos papeis do que pelo meu. Um homem, enquanto está vivo, mesmo atado de pés e mãos, tem sempre o futuro à sua espera; um livro inédito destruído, é uma esperança eternamente perdida.»

leitora
 
 
“Cada vez tinha mais necessidade de me perder por montes e vales, liricamente sonâmbulo e de reflexos prontos, a proceder à revelia da razão. O homem primitivo que nunca se resignara dentro de mim só vinha á tona em toda a sua plenitude de cartucheira à cinta. O acto venatório era para os meus sentidos o regresso à pureza original.
( V –p.65)
...
Tanto como ao dia de médico, devia a essas andanças cinegéticas o mais autêntico do que escrevia. O contacto profissional com o sofrimento humano como que dava corpo físico à minha dolorosa consciência da grandeza trágica da nossa condição; a intimidade lúdica com a natureza restaurava, por sua vez, na acuidade activa dos sentidos, a certeza de que há na vida uma tenacidade intrínseca que, contrariando os deseperos da razão, é um permanente acto de fé na graça lustral da esperança.”
( V – p.66)


Troti
 
  PELA ORDEM E PELA PÁTRIA
A melhor forma de controlar o povo era adormecê-lo em ignorância. Fácil e barato. Caso contrário, existia sempre um último recurso…

Todos, pelos modos, recebiam ordens. Os subalternos, os chefes e os chefes dos chefes.. A máquina da prepotência era impessoal. Ninguém assumia a responsabilidade dos crimes.

…………………
Essa generalizada covardia preventiva diante das vítimas do poder, fruto da outra que o legalizava, era o último sintoma trágico da desagregação social do país. Em vez dum apertado círculo de solidariedade, o perseguido sentia em redor de si um vazio de pavor e cautela.

………………………
Ora, ora! Cada um trata de si e Deus de todos...

Nem os próprios mortos caídos em desgraça tinham a acompanhá-los à cova a coragem dos vivos. Iam sozinhos para o outro mundo no esquife intocável dos renegados. Homens ilustres, que haviam dado carinho e renome às terras do nascimento, atravessavam-nas, a caminho do cemitério, com os conterrâneos dissimulados por detrás das vidraças a ver passar o préstito ladeado de polícias.

………………
Mais do que as sevícias sofridas e o seu destino ali decidido, importava o massacre da personalidade de cada condenado, a perdição da sua alma tentada de todas as maneiras. De uma criatura digna que dava entrada no covil saía muitas vezes, dias, semanas ou meses depois, um trânsfuga, um traidor, um covarde – um ser psicológica, quando não fisicamente, desfigurado, que a si próprio se desconhecia.

……………
À medida que os dias passavam, tinha a impressão de que embrutecia irremediavelmente Que os meus horizontes interiores se iam pouco a pouco acomodando aos antolhos de ferro que me limitavam a retina.


azuki
 
  A verticalidade de meu Pai dera-me a medida do homem: um ser em que toda a grandeza concebível tinha a obrigação de se reflectir.
(V Dia - pag. 429)
azuki
 
quinta-feira, março 17, 2005
  inventar diariamente a paixão
A certa altura, os meus sublinhados cingem-se a parte de fases, apenas, podendo eventualmente alterar o sentido do que está escrito. Não é o caso, mas diferem os argumentos.

Mais distante da leitura, depois da poeira pousada, cada vez me distancio mais de algumas posições de Torga, de muitos dos argumentos que apresenta. O que é natural; ler não é aceitar, ler não é absorver. Ler, por vezes é repensar, em paralelo, reencontrar deformados os nossos próprios pensamentos.


leitora
 
 
“O povo tinha isso: junto dele tudo sabia ao gosto da verdade. A ignorância era ignorância, a presunção presunção, a covardia covardia. As pessoas purificavam-se na sinceridade com que assumiam a condição.”
( V –p. 62)

Troti
 
  A sedutora pluralidade das mil versões potencialmente possíveis
Olhávamos para um espelho partido e pensávamos que a nossa cara era assim… porque nunca nos tínhamos visto num espelho normal. Não teríamos sido mais humanos sem esta “gigantesca máquina de impostura”? Não teríamos ouvido e visto melhor o que há de melhor, e mais depressa aprendido a pensar, a colocar em questão, a tentar perscrutar a verdade para além da fachada? Seríamos hoje um povo mais sábio caso não tivéssemos vivido com a alma amortalhada?

E quando, mais cedo ou mais tarde, já donos de um destino articulado, damos conta de quanto nele pesou o acidental, fica-nos a doer na imaginação a sedutora pluralidade das mil versões potencialmente possíveis, mas irremediavelmente perdidas, como tantas outras promessas frustradas… Quantos anos de desenvolvimento sócio-cultural e económico teremos perdido? Quantos intelectuais foram incapacitados de nos ajudar a crescer? Quantos pensamentos e acções terão sido cerceados à nascença? Quantas vidas teriam sido poupadas do descalabro de uma guerra fora do tempo? Quantas feridas se poderiam evitar com uma descolonização menos desastrada?

azuki
 
 
Sentia mais apreensão pelo destino dos papéis do que pelo meu. Um homem, enquanto está vivo, mesmo atado de pés e mãos, tem sempre o futuro à sua espera; um livro inédito destruído, é uma esperança eternamente perdida.

(V Dia - pag. 418)
azuki
 
quarta-feira, março 16, 2005
  Viver a prazo
«Sempre pensara que a grande tragédia do homem era viver a prazo, curto ou longo, pouco importava. Por isso, que, em última análise, tanto valia acabar agora como logo. Um minuto somado ou diminuído à conta final, não alterava a angústia. Gostaria, contudo, até fisiologicamente, de ter também assim um espaço seguro de durabilidade, ao menos na convicção. Mas no meu destino não havia futuro. Desde que em criança vira cair meu avô, abatido da minha convivência sem qualquer razão que eu entendesse, sentia dentro de mim, entranhado na carne, o cilício da morte. Nunca iniciava qualquer empresa seguro de s levar a cabo. E procurava que todos os passos que dava no mundo fossem ligeiros e largos, na ânsia de chegar depressa e o mais longe possível.»


Esta ânsia existe em mim, por razões diferentes: o desejo de ver tanto, de fazer muito, e a consciência de que apenas conseguirei atingir a sua amostra. Um exemplo será a minha biblioteca sonhada, e entristece-me compreender que não terei tempo para ler nem a centésima parte de tudo que me apetecia.

Consequência, no meu caso pessoal: cada vez mais exigente nas escolhas, de acordo com os meus critérios altamente subjectivos, e esforço constante de valorizar cada minuto presente, porque é insubstituível.

leitora
 
 
“O meu projecto de vida sempre fora o mesmo: cumprir-me. Ser como homem uma autenticidade tácita e como artista uma aflição expressa.”
( V – p.40)

Troti
 
 
“Não me sentia uma vocação póstuma. Escrevia para a hora que passava, para o meu tempo.”
( V – p.38)

Troti
 
  Este país nunca poderia ser inteiro porque lhe faltava o sopro do espírito
A cultura deveria consistir nas várias formas de expressão de um povo, pelas quais ele próprio se reconhece e se materializa, as diversas faces da consciência que uma nação tem de si própria. E não há verdadeira cultura quando as obras são apreendidas, os seus autores perseguidos, a imaginação tolhida por um clima de terror instalado; quando se vive sobre o culto da personalidade e sobre o dogma, se perpetua a mediocridade, se estrebucha a cada sinal de mudança. Não há exposições, nem conferências, nem ministérios da propaganda que o valham. Porque o país não se limita a ser o fadinho, a revista e o folclore, nem a erudição de instituições monolíticas. Não há nenhum regime autoritário em que a cultura floresça sem esteios; de uma forma ou doutra, ela vem sempre decepada. Heterogeneidade, pluralidade, modernidade, criatividade, tantas palavras enxovalhadas…

azuki
 
  …todos os horizontes apeteciam da mesma maneira. Todos enchiam a alma de uma paz confiada.
(V Dia - pag. 404)
azuki
 
terça-feira, março 15, 2005
  Dignidade
“Sim, havia em cada um de nós um actor capaz de representar os mais inverosímeis papéis. O que não impedia que nos recussássemos a desempenhar alguns. Era essa a dignidade.”
( V – p.35)

Troti
 
 
“O destino fizera de mim um nó cego de angústias, sempre apertado, mesmo nos melhores momentos. Insatisfeito ao cabo de toda as realizações, obsecado pela fuga do tempo, rolado como um seixo na torrente dos dias, nenhuma hora me sabia ao gosto sonhado.”
( V – p.25)

Troti
 
  profissão:
escritor

«de livro para livro as dificuldades redobravam»

«depois de escrever aos arrancos um poema, um capítulo ou uma simples frase, ficava em pânico, crucificado pela incerteza de repatir a façanha»

«o terror obsessivo de uma súbita mudez irreversível que selasse para sempre as portas do silêncio.»

ou o medo da página em branco.

Lobo Antunes diz usar a técnica de deixar sempre uma frase a meio, para ter maior probabilidade de continuar o trabalho de escrita no dia seguinte.

leitora
 
  A simpatia que me despertavam os simples diminuía na razão directa da escala social.
(V Dia - pag. 372)
azuki
 
  O Artista e o Homem
(Dr Olívio) Desculpasse, mas de maneira nenhuma poderia aprovar semelhante loucura. (..) Sabia, por experiência própria, que era pura estupidez correr voluntariamente qualquer risco (..) Tratando-se de ideias, então, nem falar. O poder estava vigilante em todos os lugares e momentos. Ao mínimo escorregão… Portanto, nada de assanhar a fera… Além disso, que vantagem havia em dizer certas verdades? Em primeiro lugar, ninguém as queria ouvir, Só a polícia. Depois…

Apesar do grau de imaginação que devia ao acto criador, Torga, como ser socialmente responsável, nunca deixou de sentir necessidade de fazer da sua a voz do povo, de comungar com as aflições das pessoas, de denunciar aquilo que entendia ser o mal; nunca deixou de reagir, por vezes até de forma exagerada ou deslocada, pois não estava na sua natureza conseguir olhar para o lado e assobiar.

Nunca, como no momento actual, a realidade desafiara tão ostensivamente os artistas e, mais do que nunca, eles sentiam a urgência de a olhar de frente e desmascarar, para que não ficassem sem denúncia e acusação os crimes do mundo.

azuki
 
  A natureza negara-me o dom da conciliação. Antes mesmo de ler o Apocalipse já vomitava os mornos.
(V Dia - pag. 370)
azuki
 
segunda-feira, março 14, 2005
 
“_ Vou tentar ser um marido cumpridor. Mas quero que saibas, enquanto é tempo, que em todas as circunstâncias te troco por um verso.”
( V – p.17)


O que é um marido?

Troti
 
 
“O longo percurso sentimental...não passara de uma via-sacra de equívocos. Todas as santas mulheres que nele haviam tido algum relevo queriam-me banal como elas, certo nos quatro pontos cardeias do quotidiano. Nenhuma tentara enriquecer de qualquer modo a qualidade dos meus dias. Mais: nem as suas próprias horas desejavam que eu enriquecesse. Propunham-se e propunham-me apenas uma existência horizontal, rasa, doméstica, de ramerrão e procriação. Se lhes falava de poemas, de livros, de viagens, ouviam-me complacentemente, sem uma palavra de comprometimento. O mundo da imaginação nada lhes dizia.”
( V – p.16)

Troti
 
 
«O homem é a consciência que tem dos seus passos.»

leitora
 
  Ambivalente Olhar Luso
…ou ardíamos na fogueira de um patriotismo descabelado ou nos envergonhávamos da condição. Nenhum de nós aceitava a Pátria naturalmente, singelamente. Nas vozes que a exaltavam ou denegriam vibrava o mesmo despeito, a mesma humilhação, o mesmo sentimento de inferioridade. Passávamos a vida a confrontá-la. A reacção típica quando falamos do chão pátrio: uma no cravo, outra na ferradura…; caramba, quanta ambivalência…. Temos semelhante atitude quando desabafamos com alguém sobre os males da nossa própria família: se o outro nos ouve atenta e silenciosamente, as críticas surgem em catadupa; mas, caso o nosso receptor resolva reagir, aprovando as nossas censuras, e até enriquecendo a conversa com as SUAS críticas à NOSSA família, enchemo-nos de brios e tornamo-nos os seus mais fervorosos defensores… Divididos nos afectos, sabemos que algo está mal mas sentimos que quem está de fora não tem legitimidade para, como se diz, mandar bitaites… é como se, apenas nós, por sermos lusos, tivéssemos o direito de nos referirmos à Pátria de forma pejorativa.

Uma arte desconfiada da sua originalidade, uma técnica em segunda mão, uma economia de pedintes… que orgulho resistia a semelhante sudário? Porquê este pessimismo? Porquê este desconforto que sempre nos acompanha? Será a reacção típica de quem ama algo bastante imperfeito… Contra mim falo, sou a primeira a descascar na Pátria, tristemente célebre no topo dos rankings “os piores em…” dos (antigos) quinze. Agora, que somos vinte e cinco, a coisa fica um pouco mais diluída… Mas, acabo sempre por pensar (como o Woody Allen constatou quando cá esteve no ano novo) que vivo num bocado de paraíso. E tento nunca me esquecer disso, mesmo nos momentos em que desesperadamente desejo mais, muito mais para o meu país. À semelhança do que acontecia na vida, que também nos é imposta e a que temos de dar sentido, assumindo-a, apenas num idêntico assenhoreamento voluntário e corajoso do berço o poderíamos justificar.

azuki
 
  …não há espelho mais transparente do que uma página escrita.
(V Dia - pag. 369)
azuki
 
domingo, março 13, 2005
 
“Sem que se visse bem a razão de tal pobreza, faltava aos homens do cérebro a chã humanidade dos outros. Davam ao semelhante beleza, ideias, frases, mas negavam-lhe a mão samaritana. Havia inevitavelmente um chá entre eles e o desamparo alheio."( IV – p.188/189)

Troti
 
 
«O tempo acabara por me ensinar que não há espelho mais transparente do que uma página escrita. é nela que fica testemunhada para todo o sempre a verdade irreversível do autor: a sua autenticidade se for sincero, e a sua falsidade, se mentiu. É aí onde os possíveis leitores de hoje e os de amanhã o surpreendem e julgam, e ele próprio, que se procura, acaba por encontrar uma imagem à sua semelhança ou uma ficção irremediavelmente desfigurada.»


Se querer pôr em causa o desejo de autenticidade de Torga neste seu romance autobiográfico, discordo destas palavras. Toda a imagem que temos de nós próprios é necessariamente parcial, todos nos inventamos um pouco, nem que seja pelo facto de salientar um pormenor em detrimento de outro. Presumo que um artista de ficção, muito mais sensível ao estilo da escrita, terão ainda menos capacidade de não se inventar, nesta lucidez impossível que vai ser alterada pela escolha de palavras e pela forma escolhida para contar ou não contar cada episódio.

Leitores que somos, continuamos, contudo, à procura do homem por trás do livro, seja a história mais ou menos autobiográfica. Leitores que somos, gostamos de ser iludidos, gostamos de imaginar que descobrimos um rosto, uma sombra, sobras do real nas entrelinhas do texto. Mesmo sabendo que quem escreve nos pode apenas enganar, ainda mais do que faz a si próprio.

leitora
 
  Guerra Civil de Espanha (1936-1939): O fim da Guerra
“A superioridade militar do Gen. Franco e a unidade que conseguiu impor sobre as direitas foram decisivos para a vitória sobre a República. Em 1938, as suas forças cortam a Espanha em duas partes, isolando a Catalunha do resto do país. Em Jan/1939, as tropas do Gen. Franco entram em Barcelona e, no dia 28/Mar, Madrid rende-se depois de ter resistido a poderosos ataques (aéreos, de blindados e de tropas de infantarias), por quase três anos.

As baixas da Guerra Civil oscilam entre os 330 a 405 mil mortos, sendo que apenas 1/3 ocorreu na guerra. Meio milhão de prédios foram destruídos parcial ou inteiramente e perdeu-se quase metade do gado espanhol. O produto per capita reduziu-se em 30% e fez com que a Espanha afundasse numa estagnação económica que se prolongou por quase trinta anos.”

azuki
 
sábado, março 12, 2005
  O País que tivemos IV
A industrialização do país está num estado muito incipiente quando Salazar sobre ao poder e assim se manterá por longos anos. Não existia, aliás, nada que se parecesse com uma alta burguesia industrial implantada.

A ordem é de cariz feudal, o poder do clero é restaurado, o paradigma de desenvolvimento encaixa numa lógica rural e de subsistência, os cargos importantes são de confiança política e não de cariz meritório. Província, tradição, proprietários da terra, donos de um pequeno negócio no sector terciário…, até ao final dos anos 50, esta ordem de coisas não vai mudar. Uma economia débil, pobreza, analfabetismo, imobilismo social, desequilíbrios sectoriais e regionais. A quantos anos de atraso económico, social e político fomos condenados?

E, claro, a verdadeira pedra de toque do regime, o aparelho de Estado. Monstro de inércia, máquina burocrática imensa e inamovível, cuja única função é levar papéis, trazer papéis, carimbar papéis, assinar papéis, multiplicar papéis, com vias em duplicado, em triplicado, em quadruplicado, passar papéis daqui para ali, da estante de cima para a estante de baixo, da mesa da direita para a mesa da esquerda, embrulhar-se em papéis, afogar-se em papéis, mobilizar equipas imensas à volta dos papéis, para se chegar ao fim e se começar tudo outra vez, porque o importante é o processo de movimentação e de multiplicação dos papéis.

azuki
 
 
"Maldita literatura! No dia em que começara a namorá-la, dera o primeiro passo errado no caminho dos afectos"
( IV - p.187)

Troti
 
 
“Também se vive a sentir viver os outros”
( IV – p.138/139)

Troti
 
 
“Cheios de suficiência racional, mal calculamos a extensão do acaso no curso da nossa existência. Que é em função das mais insólitas conjunções, fora do império pragmático da vontade, que a vida se resolve empírica e irreversívelmente, num jogo dinâmico de vectores circunstanciais. E quando, mais cedo ou mais tarde, já donos de um destino articulado, damos conta de quanto nele pesou o acidental, fica-nos a doer na imaginação a sedutora pluralidade das mil versões potencialmente possíveis, mas irremediavelmente perdidas, como outras tantas promessas frustadas.”
( IV – p. 128/129)

Troti
 
 
«esquecera-nos que havia uma morte individual - a que trazíamos às costas desde o nascimento, e que poria termo, quando menos esperássemos, a quantas ambições o coração albergasse. E esse sentimento de falência inevitável, a curto ou a longo prazo, carregava de desalento a alma do mais empedernido.»

Este fatalismo aborrece-me. Nada é desculpa para não fazer, não tentar. O fracasso não encaixa no inevitável fim, encaixa apenas no modo como usamos o entretanto.

leitora
 
  A minha política é o trabalho
Sempre fomos assim – a esperteza saloia aliada ao medo e à fome a fechar-nos a boca. São poucos os que de entre nós se erguem – são poucos e imediatamente acossados pelas injúrias, lançadas por medo de vermos exposta a nossa mediocridade. Dizem-nos que não é num tempo de grandes causas aquele em que vivemos, e eu pergunto-me: se fosse então, seríamos mais do que bem-intencionados temerosos simples sabujos?
nastenka-d
 
  Guerra Civil de Espanha (1936-1939): A crise entre as esquerdas
“Estaline temia que a revolução social desencadeada pelos anarquistas e trotsquistas pusesse em perigo a defesa da República. Ordenou então que o PC espanhol comandasse a supressão das milícias (que seriam absorvidas por um exército regular) e um expurgo no POUM (uma pequena organização pró-trotsquista), o que aconteceu em 1937. Esta divisão das esquerdas, entre pró-revolução e pró-república, debilitou ainda mais as possibilidades defensivas do governo republicano.”

azuki
 
sexta-feira, março 11, 2005
  O País que tivemos III
Goste-se ou não se goste, um sistema capitalista que funcione, não fica à espera que Nosso Senhor Jesus Cristo lhe venha resolver os problemas do foro económico e financeiro. Utiliza critérios racionais e gente capaz, para alocar os recursos da forma mais eficiente possível. E esses critérios e essa gente podem já não ser os mesmos amanhã. É assim o processo de desenvolvimento. Dinâmico. Exactamente o contrário de tudo aquilo que o salazarismo personificou. Com uma mentalidade profundamente anti-capitalista, o regime estava impreparado para corresponder aos desafios da modernidade e ficou parado no tempo e na história. Aliás, tal como pretendia.

azuki
 
 
“Perdera a fé do catecismo, discutia os dogmas, desafiava o senso comum...Era o preço da minha identificação.”
( IV – p.122)

Troti
 
 
“Esta lição, pelo menos, aprendera já: - que havia espíritos indomáveis que nenhuma força vergava, e que, no plano dos valores humanos, ninguém está sózinho no mundo, por mais isolado que pareça.”
( IV – p. 119)

Troti
 
 
Sabíamos ambos de antemão que nem poderíamos ficar amigos, nem inimigos, nem indiferentes, e que também, em caso algum, inventaríamos qualquer pretexto para nos aproximar.
nastenka-d
 
  Guerra Civil de Espanha (1936-1939): A intervenção estrangeira
“Como o golpe não teve o sucesso esperado, o conflito tornou-se uma guerra civil, com manobras militares clássicas. O lado nacionalista de Franco conseguiu imediato apoio dos nazis e dos fascistas italianos (aviação e tropas de infantaria e blindados), enquanto que Estaline enviou material bélico e assessores militares para o lado republicano.

França e Inglaterra optaram pela "Não-Intervenção". Mesmo assim, não foi possível evitar o engajamento de milhares de voluntários esquerdistas e comunistas que vieram de todas as partes (53 nacionalidades) para formar as Brigadas Internacionais (38 mil homens) e lutar pela defesa da República.”

azuki
 
quinta-feira, março 10, 2005
 
“-És então escritor?
- Sou.
- E poeta também, pelos vistos...
- Também.
- Um tipo formidável! Médico, escritor, poeta...vais longe!
- Hei-de ir até onde puder.
Tinha a impressão de que aquele cinismo me escorria pelo corpo como uma baba.”
( IV – p.107)

Troti
 
 
“De tanto olhar para dentro, o espírito parecia virado do avesso, e os próprios sentidos, até há pouco sempre prontos a vibrar, seguiam-lhe o exemplo introspectivo.”
( IV – p.101)

Troti
 
 
“O homem só se descobre a descobrir”
( IV p.95)

Troti
 
 
“A cadeia ficava ao lado da esquadra, encostada à muralha do castelo...O dia chegou ao fim, à hora do jantar o carcereiro trouxe uma marmita de comida, que mal cheirei, e a noite cerrou-se tão escura dentro de mim como lá fora.”
( IV p. 94)

Troti
 
  O País que tivemos II
Todos os que beneficiavam da Situação (aristocracia financeira, pequena burguesia urbana, Igreja, aparelho do Estado, poder latifundiário, intelectuais de direita, capital monopolista,...) contribuíam para perpetuar a inércia e o status quo. “Ele é o árbitro de todas as dúvidas e o oráculo de todas as soluções”, diria Caetano, em 1951, do homem que fugia do que pudesse remotamente significar uma porta aberta para a dissolução dos costumes e para o comunismo. Salazar não arrisca um tostão no progresso, mantendo-se à margem de tudo o que mexe, tudo o que seja sinónimo de inovação, de conflito social, de corrupção: cidade, indústria, Europa, pensamento. É, talvez, por isso que Salazar permaneceu enquanto outros regimes autoritários caíam, até que uma cadeira se cruzou no seu caminho...

azuki
 
  Memórias da Guerra Civil
vista por Pablo Picasso



leitora
 
 
Separava-nos um fosso da largura da imaginação. Alice dava, e eu dava-me. Era essa a diferença.
nastenka-d
 
  Guerra Civil de Espanha (1936-1939): Os partidos políticos
“As esquerdas, obedecendo a uma determinação do Comintern (Internacional Comunista, controlada pela URSS), resolveram unir-se aos democratas e liberais radicais, numa Frente Popular, para ascender ao poder por meio de eleições. Assim, divididas em diversos partidos e organizações (PSOE, Partido Comunista Espabhol, União Geral de Trabalhadores, ..), aliaram-se aos Republicanos (Acção republicana e Esquerda republicana) e a mais alguns partidos autonomistas (Esquerda catalã, os galegos e o Partido Nacional Basco). Esta coligação venceu as eleições de Fev/1936, dominando 60% das Cortes (parlamento) e derrotando a Frente Nacional.

A direita estava dividida na CEDA (Confederação das Direitas Autónomas), no partido agrário, nos monarquistas e tradicionalistas (Carlistas) e nos fascistas da Falange espanhola (liderados por José António).

O clima de turbulência interna, motivado pela intensificação da luta de classes (especialmente, entre anarquistas e falangistas), que provocou inúmeros assassinatos políticos e as desavenças internas na coligação contribuíram para criar uma situação de instabilidade que afectou o prestígio da Frente Popular.

Derrotada nas eleições, a direita passou a conspirar com os militares e a contar com o apoio dos regimes fascistas (Portugal, com Oliveira Salazar, Alemanha com Hitler e a Itália de Mussolini). No dia 18/Jul/1936, o Gen. Francisco Franco insurge o Exército contra o governo republicano. Ocorre que, nas principais cidades (Madrid, Barcelona,..), o povo saiu à rua e impediu o sucesso do golpe. Milícias anarquistas e socialistas foram então formadas para resistir ao golpe militar.

Em pouco tempo, o país ficou dividido numa área nacionalista, dominado pelas forças do Gen. Franco, e numa área republicana, controlada pelos esquerdistas. Nas áreas republicanas ocorreu então uma radical revolução social: as terras foram colectivizadas, as fábricas e os meios de comunicação dominadas pelos sindicatos; em algumas localidades, os anarquistas chegaram até a abolir o dinheiro.

Em ambas as zonas, matanças eram efectuadas através de fuzilamentos sumários. Padres, militares e proprietários eram as vítimas favoritas dos "incontroláveis", as milícias anarquistas, enquanto que sindicalistas, professores e esquerdistas em geral, eram abatidos pelos militares nacionalistas.”

azuki
 
quarta-feira, março 09, 2005
  O País que tivemos I
Provinciano, desconfiado, doentiamente autoritário, de fato escuro e hábitos simples, Salazar afasta todos os que não lêem pela mesma cartilha; “sei muito bem o que quero e para onde vou”, diria em 1932.

Salazar geria o país com tacanhez e sem sobressalto, na lógica de que mais-vale-um-pássaro-na-mão-do-que-dois-a-voar, e é-melhor-conservar-o-pouco-que-ganho-ao-fim-do-mês-do-que-estar-para-aí-a-meter-me-em-aventuras… Por isso, tudo o que comportasse risco, inovação, modernidade, arrojo, expansão, SIMPLESMENTE NÃO ERA BEM-VINDO.

A administração do Estado deve ser “tão clara e tão simples como a pode fazer qualquer boa dona de casa – política comezinha e modesta que consiste em se gastar o que se possui e não se despender mais do que os próprios recursos.” (A. Salazar, 1928)

azuki
 
 
“...tinha de reconhecer sem subterfúgios que, depois de publicados, os livros deixavam de me interessar.”
(IV – p. 83)

Troti
 
 
“Em todos os momentos da vida, a ânsia de eternidade a pulsar na circunstância.”
( IV –p.77)

Troti
 
 
”Escrever! De dez ou doze laudas cheias, nem meia dúzia de linhas se aproveitavam...
- Para alinhavar baboseiras, mais vale ficar calado.
- Quê! Falta de inspiração?
Ria-me. A ideia que as pessoas faziam da crucificação literária!”

(IV – p.74)

Troti
 
 
“Esquecia –me de que somente certos versos felizes se inscrevem na eternidade, que o corpo de uma obra participa da corrupção do tempo.”( IV – p.73)

Troti
 
  Memórias da Guerra Civil
VI



leitora
 
  Descer dentro de mim à fundura possível
.
nastenka-d
 
  Guerra Civil de Espanha (1936-1939): Antecedentes
“A Espanha dos 30 era um anacronismo histórico. Enquanto a Europa ocidental já possuía instituições políticas modernas, Espanha era um oásis tradicionalista, governada pela "trindade reacionária" (exército, Igreja católica e latifúndio).

O exército vivia a nostalgia de um passado imperial grandioso (existia 1 general para cada 100 soldados, a maior percentagem do mundo); a Igreja era herdeira do obscurantismo e da intolerância dos tribunais do santo Oficio, condenando a modernidade como obra do demónio; no campo, 2 a 3 milhões de camponeses pobres, los braceros, eram submetidos às práticas feudais e dominados por uns 50 mil hidalgos, proprietários de metade das terras do país.

Como resultado da grave crise económica de 1930 (iniciada pela quebra da bolsa de valores de N. Iorque, em 1929), a ditadura do Gen. Primo de Rivera, apoiada pelo caciquismo (sistema eleitoral viciado), foi derrubada e, em seguida, caiu também a monarquia. O Rei Afonso XIII foi obrigado a exilar-se e proclamou-se a República em 1931, chamada de "República de trabajadores".

A esperança era que, doravante, a Espanha pudesse alinhar-se com os seus vizinhos ocidentais e marchar para uma reforma que separasse Estado e Igreja e que introduzisse as grandes conquistas sociais e eleitorais recentes, além de garantir o pluralismo político e partidário e a liberdade de expressão e organização sindical.

Mas o país terminou por conhecer um violento confronto de classes, no meio de uma profunda depressão económica, provocando a frustração generalizada na sociedade espanhola.”

azuki
 
terça-feira, março 08, 2005
  Dissertações sobre o Estado Novo
Nasci por altura do 25/Abr mas não devo, não posso achar que nada tenho a ver com o que se passou no País durante quase 50 anos. É preciso que falemos com os nossos avós, com os nossos pais, com os nossos tios, que ouçamos os seus relatos, que tentemos perceber como era viver num país orgulhosamente só. Sinto que é minha obrigação querer saber o que aconteceu, regozijando-me por tudo o que desde aí foi conquistado.

A verdade é que a minha geração tem uma noção inquinada da história, que lhe é dada pelo acesso aos testemunhos intensos dos opositores do regime, não se tomando consciência de que os testemunhos passivos, e mesmo a própria ausência de testemunhos, também são importantes do ponto de vista sociológico. Quer isto dizer que a maioria da população (pelo menos, até final dos anos 50) vivia relativamente bem com aquele estado de coisas: os pobres não tinham capacidade para pôr em causa, os remediados levavam a sua vida sem grandes sobressaltos e os ricos tiravam os devidos proventos da situação. Acabam por ser os sectores mais dinâmicos (no sentido de progressistas, da vanguarda) da sociedade a rebelar-se (os cidadãos politizados, os intelectuais de esquerda, os artistas,…) mas sempre de forma subterrânea.

No limite, o cidadão comum, dirá "aborrecia-me ter que gramar com a cara de Salazar e do Alm. Américo Tomás em todos os sítios", ou "não gostava do excessivo ascendente dos padres…", ou "irritavam-me os tiques da Mocidade Portuguesa", acabando por confessar nunca ter sido impedido de fazer uma vida (dita) normal. A maioria da população só despertou verdadeiramente quanto um facto lhe veio desestabilizar o quotidiano: uma guerra que entrou em cada casa e levou pais, maridos e irmãos para um sítio longínquo.

A Revolução acaba por ser um espelho da apatia de um povo, desse processo de letargia profunda em que vivemos durante décadas, vontade adormecida em banho-maria. Foi uma revolução sem tiros! Sem tiros! Claro que o que veio a seguir não foi melhor – mas o povo tinha de reaprender a usar a liberdade, com moderação, urbanidade e civismo, e isso não se aprende de um momento para o outro…

azuki
 
 
“Gostaria de ser um eco solitário. Perguntava é se a voz que ali erguera estaria à altura de todas as revoltas.”
( IV – p.72)

Troti
 
 
“Creio que nenhum suspeitava sequer desse meu dom ubíquo, dia a dia mais pronunciado, dessa capacidade de ser simultaneamente réu e juiz em causa própria. Só que, a partir de certa altura, fossem quais fossem as sugestões recebidas, embora as tomasse na devida conta, em última análise apenas o meu veredicto pesava na balança.”
( IV – p.68)

Troti
 
  FRASES
“Sempre pensara que a grande tragédia do homem era viver a prazo...”
( IV – p.51)

“A dureza das pessoas, em geral, e a perfídia dos literatos, em particular, tinham-me durante anos e anos escabreado a alma.”
( IV – p.55)

“O homem nessecita de sentir companhia no erro, nas fraquezas e até nas traições.”
( IV – p.64)


Troti
 
 
“Ao cabo de alguns anos de tarimba literária, continuava canhestro, enrodilhado, hesitante, atado como nos primeiros tempos. Talvez pior ainda, já que agora nem o deslumbramento de neófito cegava a evidência.
...
De boa fé, atribuiam-me a destreza dum artesão prendado, com a perícia às ordens da vontade. Mal imaginavam que, depois de escrever aos arrancos um poema, um capítulo ou uma simples frase, ficava em pânico, cruxificado pela incerteza de repetir a façanha. Nunca poderiam conceber que as tais horas de eufórica plenitude se reduziam a longas agonias, em que, às mil dificuldades oficinais, se vinha juntar o terror obsessivo de uma súbita mudez irreversível que selasse para sempre as portas do silêncio.”
(IV – p.41/42)

Troti
 
 
“A tropeçar constantemente na originalidade fundamental dos seres e das situações, a exigir para cada experiência uma voz inédita, sem poder deduzir por analogia qualquer padrão invariável de conduta, e incapaz de utilizar em benefício próprio os variados expedientes do êxito, só me restava a dignidade de ser lucidamente um eterno aprendiz.”
( IV – p.40)

Troti
 
 
“A esperança tem uma vertente irracional.”
(IV – p.32)

Por isso ainda conseguimos arranjar alguma nesta vida!

Troti
 
  Guerra Civil de Espanha (1936-1939): Introdução
“Luta entre as forças do nacionalismo e do fascismo, aliadas as classes e instituições tradicionais de Espanha (exército, Igreja e latifúndio), e a Frente Popular que formava o governo republicano (a República havia sido proclamada em 1931, com a queda da monarquia), representando os sindicatos, os partidos de esquerda e os partidários da democracia.

Para a direita espanhola, tratava-se de uma cruzada para livrar o país da influência comunista e da franco-maçonaria e restabelecer os valores da Espanha tradicional, autoritária e católica.

Para as esquerdas, era necessário travar o avanço do fascismo, o qual já havia conquistado Itália (1922), a Alemanha (1933) e a Áustria (1934). Segundo as decisões da Internacional Comunista de 1935, elas deveriam aproximar-se dos partidos democráticos de classe média e formar uma Frente Popular; socialistas, comunistas (estalinistas e troskistas), anarquistas e democratas liberais deveriam unir-se.

Este amplo confronto ideológico fez com que a Guerra Civil de Espanha deixasse de ser um acontecimento puramente espanhol. Nela, envolveram-se a Alemanha nazi e a Itália fascista, que apoiavam o golpe do General Franco, e a União Soviética, que se solidarizou com o governo Republicano.”

azuki
 
  Memórias da Guerra Civil
V



leitora
 
  Olhava a Sistina, deslumbrado e aflito ao mesmo tempo.

nastenka-d
 
segunda-feira, março 07, 2005
  O aparecimento de Salazar
A desordem e o descrédito da 1ª República vieram demonstrar que, em Portugal, não existia uma classe burguesa activa e capaz de ser o seu motor de desenvolvimento. A verdade é que Salazar apareceu num momento em que o País desesperadamente desejava que pegassem nele, que lhe conferissem estabilidade e confiança, que impusessem regras no meio da anarquia. Enfim, alguém que arrumasse a casa e imprimisse um rumo (fosse ele qual fosse).

Porém, num segundo momento, seria necessário mais do que alguém honesto, inteligente e organizado para gerir o País; precisávamos, como do pão para a boca, de um líder audaz, com visão, que entendesse os apelos da modernidade, que pugnasse pelo desenvolvimento económico e social, que nos ajudasse a despertar. Mas Portugal ficou parado no tempo, a ver a carruagem passar.

azuki
 
  Memórias da Guerra Civil
IV



leitora
 
 
“Persistente, incansável, reactivo e apaixonado, a combater desde criança com duas pedras apenas na fisga, o sim e o não, era como uma força vital em movimento, capaz do melhor e do pior em doses transbordantes, sem contensão e sem menha. A natureza negara-me o dom da conciliação...extremava todas as situações...e semeava ventos.
...
Hirto, monolítico, incapaz de pautar os passos pela música dos interesses, de dar aos gestos o calor postiço da hipocrisia, de entrar no labirinto das transig~encias, estava condenado á marginalidade.
...
Ao menos ía ao encontro das desilusões de olhos abertos.
(IV – p.19)

Troti
 
 
“chegara finalmente a hora de meter ombros à tarefa de harmonizar na mesma expressão a fisionomia do homem e do artista. O tempo acabara por me ensinar que não há espelho mais transparente do que uma página escrita. É nela que fica testemunhada para todo o sempre a verdade irreversível do autor: a sua autenticidade, se foi sincero, e a sua falsidade, se mentiu.
...
Teria, pois, de fazer tudo para não deixar de mim uma versão falsa, mesmo verosímil. Sabia que ninguém é capaz de se conhecer inteiramente e de inteiramente se mostrar....disfarçamo-nos primeiro e analisamo-nos depois. Além disso, tortos de raiz. Por cada propósito honrado, quantas simulações, quantos sucedâneoa e arremedos! Estava decidido, contudo, a levar a determinação até aos últimos extremos. Descer à fundura possível e apertar no rigor da grafia a lisura do pensamento e dos sentimentos. Quanto mais exigente ele fosse, menor margem de oportunidades restaria ao ludíbrio.
( IV p.17)

Troti
 
 
“Em face de alguns exemplos cruciantes, ficara a saber que é lento e penoso o caminho da arte, e que nele só o esforço aturado conta verdadeiramente. O triunfo viria depois, se viesse.”
( IV – p. 15)

Troti
 
  A carta
Tinha uma tia-avó a viver em Buenos Aires – lembro-me apenas vagamente dela, de uma visita que nos fez quando eu era ainda criança. Regressou à Argentina, não reconheceu em Portugal a pátria – regressou não à riqueza mas á miséria. Vivia, diziam, já velha e doente, num dos bairros anónimos de Buenos Aires. Não sei porque razão comecei a escrever-lhe; depois tornou-se uma espécie de dever familiar de que estava encarregue. Enviava-me nas cartas postais, pagelas, enfeites de Natal; na resposta os meus pais enviavam uma nota, e eu era a mensageira de cumprimentos que mal se tocavam.
Às vezes, ainda assim, demorava semanas a responder-lhe. Que lhe dizer? As cartas dela vinham cheias de desalentos e menções ao quotidiano, e lia-as de um fôlego, por não terem vírgulas.
nastenka-d
 
  Guerra Civil de Espanha (1936-1939): Notas
Uma das inestimáveis vantagens do convívio com a literatura é a possibilidade de absorver informação de forma gradual e indolor. Neste sec. XXI, é muito fácil saber resumidamente o que se passou em Espanha no período da guerra civil; claro que não precisamos de investir na enciclopédia, basta clickar num qualquer motor de busca. Mas, quem tem pachorra para, num momento de inspiração, se pôr a ler sobre a Espanha dos anos 30?? Quase ninguém, a não ser que exista algo que justifique essa busca. Ao começar a ler O Quarto Dia, é quase impossível resistir à tentação de me documentar um pouco mais sobre o tema. Por isso mesmo, aqui vai um resumo, cortado em bocadinhos para não ser tão maçudo, dos conhecimentos que a Internet me ajudou a consolidar acerca da Guerra Civil de Espanha.

azuki
 
domingo, março 06, 2005
  Mas Torga nunca se conformou
E tudo mudaria de significação se conseguisse transformar em positivo o sinal negativo dos anos perdidos.
…….
Embora às vezes me sentisse desalentado, no íntimo estava seguro de que nenhuma força conseguiria deter-me ou arredar-me do meu caminho.


Até se pode censurar o seu egocentrismo e a sua auto-comiseração, mas a verdade é que este homem constitui um admirável exemplo de vida.

azuki
 
  Nunca ninguém os ensinou a não se conformarem com a miséria
A reacção precavida dos pobres tinha outras razões. A um misto de inveja e admiração, e até a certo orgulho de classe, juntava-se neles um sentimento defensivo. A aldeia vivera sempre sem qualquer assistência. As otites e os panarícios rebentavam por si, ao cabo de uivos que faziam estremecer o granito das casas. A doença que batia a qualquer porta era um espectáculo de todos, onde ninguém deixava de colaborar com mezinhas e conselhos. Feridas crónicas, ensopadas em folhas de malva e resignação, acompanhavam o giro das estações.
– A Feliciana lá morreu...
– Chegou-lhe a hora...
Iam seguindo os estragos da febre, as destruições do cancro, os progressos da tísica, integrados no ritmo da própria natureza, incapazes de conceber que se pudesse opôr um dique de resistência ao rio da fatalidade. Tocar a anjinhos na torre era tão natural como tocar às avé-marias. Se o sino grande da irmandade abria o seu vozeirão a chamar, ainda um frémito de terror percorria a veiga. Agora se badalava o pequeno, ninguém fazia caso.
– Parece que ouço sinais...
– É uma criança.
E a vessada continuava, alheia às enterites da primavera que dizimavam a infância da freguesia.
– Anda Deus a fazer a colheita.
Sem outra explicação para as desgraças, aceitavam-nas como desígnios da providência. E olhavam desconfiados quem viesse lutar contra essa condenação milenária, chamá-los à obrigatoriedade de uma atitude de reacção.


azuki
 
  Memórias da Guerra Civil
III



leitora
 
 
“Foi nessa pátria...que me diapus a continuar, com redobrada aplicação, o exercício de curar e o suplício de escrever, sem ilusões de qualquer ordem quanto às dificuldades da empresa.”
( IV – p.14)

Troti
 
 
“Mas não seriam riquezas também, embora de consumo caseiro, certas particularidades, só nossas? As fontes ainda a correr e a refrescar, os frutos da terra ainda a apetecer e a saber, o povo ainda simples e cordial, o convívio ainda humano, a natureza ainda preservada, a vida a ressumar autenticidade...”
( IV – p. 13)

Troti
 
 
“Portugal!...

ia meditando no estranho fenómeno: ou ardíamos na fogueira de um patriotismo descabelado ou nos envergonhávamos da condição..
...
Nenhum de nós aceitava a pátria naturalmente, singelamente. Nas vozes que a exaltavam ou denegriam virava o mesmo despeito, a mesma humilhação, o mesmo sentimento de inferioridade. Passávamos a vida a confrontá-la.
...
O desgraçado lusíada...sempre que se via forçado a nomear a terra de nascimento, tinha a sensação de que se denunciava.
...
cada vez se arraigava mais no meu espírito a convicção de que era preciso estar em graça para merecer certas pobrezas. À semelhança do que acontecia na vida, que também nos é imposta e a que temos de dar sentido, assumindo-a, apenas num idêntico assenhoramento voluntário e corajoso do berço o poderíamos justificar. Mas só agora, de regresso de terras ricas de tudo ou do mais essencial, via a dificuldade de atingir tal nobreza de alma. Muito poucos o conseguiam. De aí os ditirambos e os sarcasmos, lados do mesmo desepero. A impressiva evidência da crosta impedia uma visão compreensiva da medula. Serras anãs, rios de poldras, aldeias neolíticas... Uma arte desconfiada da sua originalidade, uma técnica em segunda mão, ma economia de pedintes... Que orgulho resistia a semelhante sudário?"

(IV – p. 9 a 12)

Troti
 
 
Seria capaz de viver longe da pátria na situação de emigrante que ganha o seu pão. Já o fui, de resto. Mas nunca poderia viver fora dela como escritor. Faltava-me o dicionário da terra, a gramática da paisagem, o Espírito Santo do povo.”
( III .- p.135)

Troti
 
 
“- O que vale é que a intolerância só pode aniquilar; e o espírito pode reanscer...- desabafei.”
( III – p. 127)

Troti
 
 
“...desisti. Estava mais visto que nunca seria um homem de massas, de assembleias, um devoto de civismos campais. Onde os outros se expandiam, se desinibiam, se libertavam, encolhia-me eu, de voz estrangulada e coração apertado. Não. O colectivo, em mim, só pensado e trasmitido ao papel.”
(III – p.120)

Troti
 
sábado, março 05, 2005
  Faces da Pobreza
A realidade trágica do dia-a-dia fazia-o aceitar nos outros uma indignidade de que ele próprio nunca seria capaz. Milénios de sofrimento e de privações comandavam ali cada sentimento. (...) Cansado, o chão dava apenas migalhas. E limitavam a fome ao tamanho da côdea. Escravos da natureza, só a transcendiam quando rezavam.
……….

Toda a região estava infestada de lepra. (…) Perguntava a mim mesmo por que razão nenhum daqueles miserandos punha termo à existência, se libertava da maldição.
………..

Um Portugal velho e rotineiro, de senhores e servos, estava ali vivo e presente. De mão vazia, ninguém pedisse justiça, conforto divino, instrução ou saúde. (…) Crédulo e submisso como há mil anos, o camponês gemia, mas esvaziava a salgadeira, a tulha e o curral. Cair no desagrado de tais divindades, seria a perdição total neste mundo ou no outro.
………………
E aldeias e vilas e cidades iguais – pelourinho, igreja e cemitério. A mesma fome, a mesma tristeza, a mesma desgraça pessoal e colectiva estampada de Oeste a Leste.
……….
Em Agarez fui recebido hostilmente por uns, e reticentemente pelos restantes. Para os ricos, a minha presença vinha subverter a ordem social que ali reinava desde que o mundo era mundo. Estavam vivos ainda os antigos patrões de minha Mãe, e os que meu Pai servira de enxada na mão, e para quem eu próprio trabalhara também na meninice, a alumiar nas regas. Os filhos tinham naufragado num mar de protecções e privilégios. E não perdoavam que o dos antigos servos, sem favores de ninguém, conseguisse triunfar.


azuki
 
  Memórias da Guerra Civil
II

 
  Malraux
“Escrever exactamente para isso: para encontrar a palavra justa no momento preciso. Foi o que Malraux fez. Procurou-a, encontrou-se, revelou-a, e o mundo agora repete-a tranquilizada. Sem ela, que seria do nosso tempo e de nós? Que sentido teriam estes horrores expostos, se não houvesse por detrás de cada mutilação a certeza que ele nos deu?”
(III-p.117118)



"...o primeiro acto de Malraux foi dizer'não' a um destino que proclamou injusto e absurdo. Mas dizendo-o activamente, foi precisamente a acção que lhe determinou toda a aventura."

"o percurso de Malraux atravessou praticamente tudo o que nos mora no sonho, na ambição, no que exprime a nossa dignidade de sermos homens".

(in "Interrogação ao Destino" - Ensaio de de Vergílio Ferreira)
http://www.apagina.pt/arquivo/Artigo.asp?ID=345

Troti
 
 
“Paris! A capital do presente...”
(III – p.104)

Troti
 
  FRASES
“...há desertos onde nenhuma semente germina”
( III – p. 97)

“...a civilização era isso: o homem laçado na desordenada selva dos instintos, e metido nos varais da razão normativa.”
( III – p 101)

“Sofria como um cão, por ser como era.”
( III – p.102)

Troti
 
  AMIEL
“Amiel era um dos meus homens, secretamente admirado pela minha própria timidez ...Reencontrá-lo na sua terra, naquele dia e nas mãos duma mulher, parecia-me simbólico. Tornava-se-me transparente o seu drama, todo de gelo circundante, de íntima solidão, e de feminina solicitude.”
( III –p. 97)


Amiel, em heliografia de 1875


"Nascido a 27 de setembro de 1821, em Genebra, Suíça, Henri-Frédéric Amiel é lembrado ainda hoje menos por seu talento como professor de Estética e Filosofia em sua cidade natal do que pela obra-prima de introspecção e auto-análise que foi o seu diário pessoal. Iniciado no final de 1847, quando o autor ainda era estudante da Universidade de Berlim e estava, nas palavras de Bernard Bouvier, "em um período de plena posse de si mesmo, de segurança e de equilíbrio" — qualidades que se revelam nas suas anotações, que alcançaram, no final de sua vida, o considerável volume de 173 cadernos e 14 000 páginas, somando-se aí alguns esboços anteriores de um registro regular de suas atividades. Mas é só a partir desse ano de 1847 que o Diário Íntimo (Journal Intime), como ele o denominou, ganha regularidade e maior dedicação do futuro professor, a ponto de se tornar sua realização favorita e companheiro inseparável até sua morte, em 1881. E tudo terminaria aí, não fosse a iniciativa de alguns editores de publicar trechos desse livro de contas de toda uma vida, sob o título Fragmentos de um Diário Íntimo, em dois volumes, no ano de 1883. A partir daí, viriam edições cada vez maiores que tornariam o tímido professor de Genebra uma celebridade mundial.

O que ele tinha tanto para anotar? De tudo um pouco. Quem quer que passe os olhos pelos registros do seu diário irá encontrar, além de um resumo das atividades cotidianas de Amiel, divagações filosóficas, críticas literárias, impressões sobre pessoas, autores e lugares, o deslumbre ante a natureza e, naturalmente, os desabafos, dilemas e dúvidas de uma pessoa altamente sensível e por vezes tímida e melancólica, mas vigorosa na defesa de idéias e no cultivo do intelecto. Em várias passagens do diário, lemos referências e análises críticas de autores célebres em seu tempo, como Renan e Naville, entremeadas das dissertações do próprio Amiel sobre seus ideais românticos, as lutas entre seus valores e certas tendências da sociedade, além dos conselhos que ele mesmo se dava, em tom imperativo, como num livro de máximas — e também o registro das ocasiões em simplesmente contrariava tudo isso. Certos apontamentos e confissões, se feitos hoje em dia, poderiam perfeitamente sair do caderno de algum adolescente: a idealização do sexo oposto, o anseio por ser amado, o esforço para disciplinar o desejo tentado pelo apelo fácil da promiscuidade... Afinal, certas angústias são as mesmas ontem e hoje."
http://www.geocities.com/Athens/Column/8413/bio_amiel.html


São de Amiel as palavras que Torga escolheu para a abertura do seu Diário:

"Chaque jour nous laissons une partie de nous-mêmes en chemin."

Troti
 
sexta-feira, março 04, 2005
  Os homens também sentem medo
Que miséria de corpo e que pobreza de espírito! Nem força física, nem mental. Esquelético por fora e por dentro. E tive pena de mim. Na hora em que esperava merecer da vida a alegria íntima do triunfo, tinha na minha frente a imagem dum homem aterrado. Quem não tem os seus momentos de fraqueza e de desalento? Mas é preciso coragem para os conseguir assumir, não é? Eu, que felizmente sou mulher, por vezes penso quão difícil será manter a tradicional imagem de virilidade quando se enfrenta a solidão, o medo ou a carência.

azuki
 
  Memórias da Guerra Civil
I




leitora
 
  Ninguém sabe
“Recebia-nos uma Suiça que vestira um albornoz da cabeça aos pés. A brancura escorregara dos cocorutos, cobria as encostas, e alastrara-se por fundegos e vales. E mostrava-nos pela primeira vez um mundo sem contrastes, albino, onde a inquietação cessara por falta de contradições.
...
Talvez que no poço secreto de cada indivíduo houvesse tumulto e desordem. Mas a fachada era serena como a paisagem”

( III – p.95/ 96)

Ninguém sabe o que há no poço secreto de cada indivíduo.

Troti
 
 
“O meu nome não ficaria gravado no mármore de nenhum palácio, nem o gondoleiro o juntaria à lista que a sua memória servia a cada visitante: Byron, Shelley, Browning, Rilke, d´Annunzio...Mas nem por isso deixaria de pertencer à falange, com as minhas queixas, as minhas paixões e os meus versos. E se as queixas e as paixões, por limitadas ao plano da pequenez do dono e à escala do país e dos comparsas a que se prendiam, pouco ou nada importavam, os versos, esses, mereciam tanto respeito como os dos outros, só pelo facto de o serem autênticamente.
Ah, sim, porque o dom de poeta ninguém mo podia negar!”

( III – p.87)

Troti
 
  Os olhos que se desmedissem...
“Porque não poderia o poeta ficar ali, naquela terra de artistas, a pulir a alma e o entendimento? Porque não renegava ele os companheiros analfabetos, os pais analfabetos, a pátria analfabeta, e nascia de novo num sítio do mundo onde as próprias raízes mergulhavam em túmulos etruscos?
Passiva mortificação. A inexorável lei das circunstâncias, a obstinada teimosia dos sentimentos, a covarde inércia dos hábitos, podiam mais que a razão. Os olhos que se desmedissem, que guardassem na retina o que pudessem, mas nada mais. O condenado teria de regressar mais dia menos dia à lura nativa, e com a baba do próprio desespero urdir o casulo possível.”

( III – p.82)

Troti
 
  Nunca tivera tempo para fitar demoradamente as coisas e os seres.
azuki
 
  O Moisés de Miguel Ângelo


Michelângelo
Moisés, c. 1515
mármore
St. Pietro in Vincoli, Roma


“Nunca uma criação humana me abalara tanto e tão fundo...Era um assombro de mortal diante do imortal. A estátua dava-me a estranha impressão de estar mais viva do que eu"
(III – p.77)

Troti
 
 
“Relia as laudas familiares. O porco da ceva morto e comido pelo Zé Serralheiro, os vivas ao doutor no dia de Reis, as tricas camarárias e o escândalo provocado pelo meu último livro...Um mundo fechado nos seus rituais e condensado nos seus rifões, tosco, tacanho, mas nobremente fiel a meia dúzia de verdades, afirmadas em todas as circunstâncias, mesmo com erros de sintaxe. Na primeira carta, a miséria e a fome honradamente expostas....Na segunda, o pânico instintivo, a incompreensão indignada e a condenação sumária. O bom e o mau misturados no mesmo almofariz sentimental, ético e judicativo. Pena que assim fosse, evidentemente, mas que mais se poderia exigir da sua limitação de cavadores analfabetos, de escravos da terra? Muito tinham feito eles, empurrando-me dali, opondo-se tenazmente a que os prolongasse na pobreza e no suor. Simplesmente, agora, com o lindo oficio de médico, a minha obrigação era poupar e enriquecer. E eu saíra-lhes lunático. Treslera.”
( III – p.66/68)

Troti
 
 
“Não queria ninguém a meu lado enquanto via a Ceia de Leonardo, admirava Sant´Ambrogio ou seguia as passadas de Stendhal. Só recolhidamente, sem reacções polémicas, poderia comparar proveitosamente a pequenez do que vira, sabia e sonhara, com a grandeza do que nunca concebera sequer que existisse. O mundo que trazia nos sentidos e no entendimento parecia-me abárbaro, ao lado de tanta sensibilidade, de tanta finura, de tanto requinte. Revelado na pedra, na tela, no bronze ou na simples maneira de ser, tinha diante de mim um universo humano singular, aberto a todas as aventuras e capaz de todas as realizações. Agora sim, ficava a conhecer em que terra e debaixo de que céu morava a imaginação criadora, a subtileza do espírito, a graça de viver.
Mas foi justamente a claridade dessa descoberta que acabou por tornar mais negra a minha condição de português."

( III - p.61/62)

Troti
 
  Não pedia ao futuro as benesses habituais. Queria dele, simplesmente, a dádiva da cultura e da beleza – únicas miragens que me fascinavam.
azuki
 
quinta-feira, março 03, 2005
  Olhar o azul puríssimo do céu
Não sabia nada, mas ia. E, atingido o cume mais alto, a fraga mais escarpada, ficava horas e horas estendido ao sol, de barriga para o ar, a olhar o azul puríssimo do céu. Adoro estas passagens do livro porque, por muito estranho que possa parecer, nem toda a gente tem capacidade de evasão. E isso é triste até mais não.

azuki
 
  «O espectro da Guerra
corria a nosso lado. O luto das almas e da paisagem era cada vez mais carregado. Sinistro, o vendaval arrasara com a mesma fúria cega o sensível e o insensível, o sagrado e o profano. Num lugarejo deserto, a cruz ainda erguida de uma igreja calcinada tinha só um braço. Na fachada, o óculo da rosácea desfeita parecia uma órbita vazia a seguir-nos pela estrada fora.»

leitora
 
 
“Mussolini, de cara medonha, fitava-nos na parede fronteira. Uma legenda por baixo esclarecia-lhe a fúria:

NOI TIRAREMO DIRITTO

também ele recebia os visitantes à entrada da pátria com expressão arrogante e frases agressivas.
( III – p.51)
...
não havia paz em ninguém. Todos tinham medo da própria sombra. “
( III – p.57)


Troti
 
 
“Depois de tantas andanças, de tanto sofrimento, de tanto estudo, o cordão umbilical continuava ligado á matriz. Tinha, realmente, uma paisagem, um meio, um sítio geográfico vital gravado nos cromossomas. O corpo podia correr todos os caminhos do mundo, e o espírito voar em todas as direcções. Aonde chegassem, denunciariam sempre a marca da origem, a singularidade inconfundível, espécie de sabor à terra de proveniência, como o dos frutos.”
( III – p.43/44)

E esta característica nunca abandonou Torga.

Troti
 
 
“O bambo temperamento lusitano reagia tão mal à violência espanhola, como à serenidade francesa. Em ambos os climas se sentia contrafeito. Num, retesado nos varais da paixão; no outro, apertado nas malhas da razão. E se do primeiro fugira aterrado, em silêncio, do segundo afastava-me com igual pressa, às asneiras.”
( III – p.38)

Troti
 
quarta-feira, março 02, 2005
 

“Até que a angústia atingiu tais alturas , que dispensou a voz confidente. Agora, em redor, vestida de luto carregado, toda a natureza falava, na mudez eloquente das suas chagas.
Rasteira e aberta ainda há pouco, só propícia a resistências interiores, a paisagem enrugara sùbitamente o cenho, numa crispação combativa. E um nome polarizou essa raiva da terra irmanada á raiva dos filhos:

GUIPÚZCOA

A própria língua hesitava a soletrar as sílabas cerradas. Havia nelas a constrição dum grito estrangulado....
Barrancos metralhados, viadutos aluídos, pontes destruídas, troncos despedaçados, casas carbonizadas, documentavam a ferocidade da luta.”

( III – p.32/33)


Cupón de Racionamiento *IRÚN*GUIPUZCOA*1940*


Troti
 
 
“A guerra mudara os sinais do quotidiano. Ou sustituíra os pacíficos por agressivos, ou avivara a significação terrífica dos que o tempo havia delido.

TORQUEMADA

E todas as fogueiras do fanatismo e da intolerância se atearam dentro de mim.”
(III – p.28)

(Saliendo de Palencia por la carretera que conduce a Burgos, a 22 km de distancia, en el punto en que el camino cruza el río Pisuerga, junto a su margen derecha, se enclava la villa de Torquemada.)

Nesta passagem Torga faz uma associação do nome da vila com o do Inquisidor.

Troti
 
  Calvário infinito...
“Postes telegráficos em cruz, numa sucessão obsessiva, imprimiam nos olhos a imagem dum calvário infinito...”(III – p.20)

São frases assim que se fixam na nossa retina e aí imprimem uma imagem indelével.

Troti
 
 
“- Arriba Franco!
Não. Ao menos eu seria um protesto. A mãe Iberia cortar-me-ia um braço se, em resposta à provocação arrogante dos funcionários, o erguesse também para saudar um tirano.
...
Prático e aterrado, o Lopes protestava...
Compreendia perfeitamente que qualquer presença discordante ali só podia criar embaraços, e transformava cada momento num pesadelo. Mas, à firmeza das convicções juntava-se não sei que imperativo da paisagem humana e telúrica que os olhos iam devassando constrangidamente, como se cometessem uma profanação. Homens da minha idade, manetas, coxos, cegos, desfigurados, inválidos para o resto da vida; velhos, velhas e crianças cobertos de luto; e um palco imenso de terra em pousio e silêncio opressivo à espera do último acto da tragédia.
( III – p.12/13)

...

O ar que se respirava era de morte, não era de vida.”

( III - p.17)

Troti
 
  E o lindo romance de amor dera, naturalmente, filhos e fome.
azuki
 
  Uma sociedade tão tradicional quanto possível
(...) ali havia tantas classes como moradores. O rico, o remediado, o pobre, o pedinte, o feitor do rico, o serviçal do remediado…

Falta o senhor prior e fica tudo dito… foi assim que a sociedade portuguesa se manteve durante décadas. Rural e provinciana. Assente nas classes sociais tradicionais. Média e grande burguesia? Não havia. Foi sempre o nosso grande problema; desde os Descobrimentos que andamos a transportar commodities de um lado para o outro. Temos uma incapacidade congénita para aproveitar a riqueza numa perspectiva reprodutiva. E a aristocracia latifundiária? Tirava da terra o suficiente para viver com fausto. Um país de camponeses descalços e analfabetos, crianças famintas, padres anafados, mangas de alpaca sornas, mestres-escola de régua ligeira, senhores da gleba, merceeiros e caixeiros-viajantes, esbirros, soldados, aristocratas da alta finança, intelectuais frustrados, esquerdistas desesperados, políticos acomodados,.....sempre iguais a si próprios, não-se-pode-mexer-que-estraga, que-bom-que-é-ter-ouro-nos-cofres,-um-povo-que-se-contenta-com-pouco-e-poder-viver-longe-dos-comunistas-que-comem-criancinhas-ao-pequeno-almoço.

azuki
 
  como o tempo passou!
«A condição feminina talvez a impedisse de aderir medularmente a problemas de ordem social. Natureza procriadora, a fêmea pode confiar na vida, mesmo quando a vê sucumbir aos pés. Do seu ventre fecundo nascerão novos rebentos. Simplesmente, quanto mais nela se estremava a mulher, mais dolorosa se tornava a minha solidão masculina.»

O mínimo que se pode dizer é que esta citação é politicamente incorrecta. Muito, muito datada. Não consigo imaginar o que passaram as mulheres de valor daquela época, quando por exemplo um Torga pensava isto da mulher que amava.

O tempo passou, esta análise está datada. Ou talvez não, talvez parte do estigma se mantenha.

leitora
 
 
O problema estava em saber se as palavras teriam ainda ali qualquer significação. Degradadas nas várias legendas que nos acompanhavam desde a fronteira, estampadas nas fachadas das casas, nas igrejas, nos muros e até no tronco das casas árvores, nenhuma pureza e sentido lhes restavam. Escrevia liberdade, e não conseguia ver espirrar de cada letra o sangue por ela vertido.

nastenka-d
 
terça-feira, março 01, 2005
 
“Escrevia liberdade, e não conseguia ver espirrar de cada letra o sangue por ela vertido...Havia uma exigência muda em cada rosto, em cada charrua abandonada, em cada ruína.. Uma exigência que nenhuma frase satisfazia. – Acção! – parecia gritar a própria quietude das coisas. O mal é que, impossibilitado – ou incapaz ? – de pegar numa arma e combater, se renunciasse a ter ao menos voz e protestar, se, resignado, cedesse à tentação do silêncio, que justificação humana me restaria? Por isso, já que não podia mais, embora a saber que utilizava oiro falso, tentaria transformá-lo em verdadeiro. Pois não eram os poetas os mágicos dessa alquimia? Não eram eles que, nas horas cruciais da História, restituíam ao verbo aviltado pela prepotência a dignidade roubada?”
( III – p.18/19)

Troti
 
  GUERNICA


"Todos vocês sabem que na Espanha nós não nos situamos como meros observadores desinteressados..." - Hitler, em 29 de abril de 1937


A segunda-feira negra de Guernica

Era uma 2ª feira, dia de feira-livre na pequena cidade da Biscaia. Das redondezas chegavam as suas estreitas ruas os camponeses do vale de Guernica, no país dos bascos, trazendo seus produtos para o grande encontro semanal. A praça ainda estava bem movimentada quando, antes das cinco da tarde, os sinos começaram os seus badalos. Tratava-se de mais uma incursão aérea. Até aquele dia fatídico - 26 de abril de 1937 - Guernica só havia visto os aviões nazistas da Legião Condor passarem sobre ela em direção a alvos mais importantes, situados mais além, em Bilbao. Mas aquela 2ª feira foi diferente. A primeira leva de Heinkels-11 despejou sua bombas sobre a cidadezinha precisamente às 16:45 horas. Durante as 2 horas e 45 minutos seguintes os moradores viram o inferno desabar sobre eles. Estonteados e desesperados saíram para aos arredores do lugarejo onde mortíferas rajadas de metralhadora disparada pelos caças os mataram aos magotes. No fim da jornada contaram-se 1.654 mortos e 889 feridos, numa população não superior a 7 mil habitantes. Quase 40% haviam sido mortos ou atingidos. A repercussão negativa foi tão grande que os nacionalistas espanhóis trataram logo de atribuí-la aos "vermelhos".

Hitler apóia Franco

Na realidade a tragédia começou oito meses antes, na noite de 25 de julho de 1936, quando, entre um acorde e outro de uma ópera wagneriana, Hitler decidiu-se a apoiar Franco. Na semana anterior o general espanhol havia sublevado o exército contra o governo republicano-esquerdista da Frente Popular. O Führer estava em Bayreuth para prestigiar o tradicional festival musical quando recebeu uma carta do caudilho. A solicitação era modesta. Tratava-se de saber se o governo nazista contribuiria com uma dezena de aviões de transporte e algumas armas. Hitler não hesitou. A vitória comunista na Espanha provocaria, por estímulo, a "bolchevização" da França, e seu regime ver-se-ia sitiado por ela e pela URSS de Stalin.

A escolha da pequena Guernica deveu-se a vários motivos. A cidade era um alvo fácil, sem proteção antiaérea, além de não ter uma população numerosa. Além disso abrigava um velho carvalho (Guernikako arbola) embaixo do qual os monarcas espanhóis ou seus legados, desde os tempos medievais, juravam respeitar as leis e costumes dos bascos, bem como as decisões da batzarraks (o conselho basco). Como o levante de Franco foi também contra a autonomia regional, a destruição de Guernica serviria como uma lição a todos os que imaginavam uma Espanha federalista ou descentralizada. Assim, quando a notícia da dizimação provocada pelo bombardeamento "científico" chegou aos jornais provocou um frêmito de horror em todos os cantos do mundo. Quase todos os habitantes de cidades, em qualquer lugar do planeta, sentiram instintivamente que estavam sendo apresentados a um outro tipo de guerra, à guerra total, e que, doravante, por vezes, seria mais seguro estar-se numa trincheira no fronte, do que vivendo numa grande capital.


Picasso, para retratar o clima sombrio que envolvia o desastre, utilizou-se da cor negra, do cinza e do branco. Como nunca a máxima de Giulio Argan segundo a qual a "arte não é efusão lírica, é problema" tenha sido tão explicitada, como na composição de Picasso. O painel encontra-se dominado no alto pela luz de um olho-lâmpada - símbolo da mortífera tecnologia - seguida de duas figuras de animais. No centro um cavalo apavorado, em disparada, representa as forças irracionais da destruição. A direita dele, impassível, um perfil picassiano de um touro imóvel. Talvez seja símbolo da Espanha em guerra civil, impotente perante a destruição que a envolvia. Logo a baixo do touro, encontramos uma mãe com o filho morto no colo. Ela clama aos céus por uma intervenção. Trata-se da moderna pietá de Picasso. Uma figura masculina, geometricamente esquartejada, domina as partes inferiores. A direita, uma mulher, com seios expostos e grávida, voltada para a luz, implora pela vida, enquanto outra, incinerada, ergue inutilmente os braços para o vazio, enquanto uma casa arde em chamas. Naquele caos a tecnologia aparece esmagando a vida
http://educaterra.terra.com.br/voltaire/mundo/guernica_eta.htm


http://www.guerracivil1936.galeon.com/norte.htm

Troti
 

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