Leitura Partilhada
perder-se e reviver
foto minha Paul Theroux é um dos “escritores de viagem” que mais invejo. (…)
ele é o autor de The Old Patagonian Express (1979) (...)
É uma viagem inesquecível (…)
Bruce Chatwin fez essa viagem. A minha ideia, aliás, era ir (…)
Não fui. Mas fiquei a imaginar como seria (…)
E o que imaginava eu? Quase nada. Apenas o ar rarefeito das montanhas. O silêncio que adormecia as encostas e declives dos Andes depois de o comboio chegar e partir em cada estação. A lentidão dos pequenos canyons em Fitalancao, logo depois do Cerro Mesa. O cheiro da comida. A humidade do amanhecer, as neblinas que descem das alturas, o azul do céu. A inveja de quem fez essa viagem sem razão aparente – só para chegar a um ponto, para aproveitar essa dádiva quase poética que o nosso tempo permite: viajar. Perder-se e reviver. Em cada minuto, mesmo se for só uma questão de imaginação.
Francisco José Viegas, Revista Volta ao Mundo, Set/08
azuki
Formas das Pedras, Os homens de Chilóe
O caixeiro-viajante estava de pé no meio das toalhas, o rosto mal barbeado contorcido num sorriso sem esperança. Sobre todas as mesas e todos os lugares havia pedras artisticamente dispostas.- São as minhas amigas disse numa voz embargada pela emoção. - Repare ! Aquilo ali é uma baleia. Maravilhoso! A confirmação do génio divino. Uma baleia com um arpão cravado no flanco. Aqui a boca e aqui, a cauda. - E isto?
- A cabeça de um animal pré-histórico. E ali, um macaco.
- Isto?
- Outro animal pré-histórico, provavelmente um dinossauro.
E isto - apontou para um calhau amarelado cheio de buracos - a cabeça de um homem primitivo. Está a ver os olhos? Aqui , o nariz. E o queixo. Veja, até mesmo a testa estreita, sinal de inteligência inferior.
- De facto - disse.
fotos blog Solas Rotas
- E este - pegou num seixo cinzento redondo - é o meu preferido. Virado assim é um golfinho. De pernas para o ar, a Imaculada Virgem Maria. Maravilhoso! O cunho de Deus impresso numa modesta pedra!
O gerente do Ritz não gostava de ser acordado antes das nove da manhã, mas os outros clientes queriam tomar o pequeno-almoço e as mesas precisavam de ser limpas. No decorrer da manhã voltei ao hotel para deixar umas coisas no meu quarto. Tinham-no levado para o hospital.
- Es loco - disse o gerente. "
Na Patagónia , Bruce Chatwin
Para contrastar com o Post de hoje da Azuki, que colocou um excerto de texto onde Chatwin descreve os homens da ilha Chilóe de forma muito negativa, encontrei outra visão dos homens dessa ilha que para mim é mais agradável, no livro do Luis Sepúlveda.
" Uma camada de neve cobre as pastagens, e a pampa, sempre salpicada de castanho e verde, adquire uma tonalidade espectral. Assim, o Patagónia Express avança por uma paisagem branca e monótona que adormece o pastor. A biblia cai-lhe das mãos e fecha-se. Parece um tijolo preto.O Patagónia Express é o comboio dos ovelheiros. Todos os fins de Inverno, centenas de chilotes vão até Puerto Natales, atravessam a fronteira e dirigem-se no comboio para fazendas de criação de gado. São homens fortes que, enfastiados com a pobreza chilota e com a proverbial dureza de carácter das mulheres insulares, saem à procura da sorte no continente. São homens fortes, mas de vida curta. Em Chiloé alimentam-se de mariscos e batatas. Na Patagónia, de borrego e batatas. Muito poucos provaram alguma vez fruta - a não ser maçãs - ou algum legume. O cancro de estômago é uma doença endémica entre os chilotes. "
Patagónia Express, Luís Sepúlveda
Uma é a visão de um inglês contra outra de um chileno. Para mim, acho que o Sepúlveda é bem mais compreensivo.
Luis Neves
Etiquetas: Bruce Chatwin
Bilhete postal (xii)
Quase todos os peões eram imigrantes. Vinham – e ainda hoje vêm – da bela e luxuriante ilhe de Chiloé, onde o ar é doce, as condições de vida primitivas e as fazendas sobrepovoadas; onde se come sempre peixe e não há grande coisa para fazer, e as mulheres são impetuosas e enérgicas e os homens preguiçosos, perdendo tudo o que ganham ao jogo.
“Na Patagónia” (pag. 136), de Bruce Chatwin, Quetzal Editores, 2004
foto minha (palafitas, na Ilha Chiloe)Ilha Chiloe, Patagónia chilena
A Ilha Chiloe, entre fiordes e canais. Gosto muito das ilhas, gosto da tranquilidade e da opressão das ilhas, do seu aroma a terra salgada, do modo como me fazem sentir segura e ao mesmo tempo aprisionada os seus mil caminhos para o mar.
azuki
Gliptodonte e a exposição sobre Darwin
Na manhã seguinte, após o pequeno-almoço, mostrou-me com o dedo a plataforma no alto da montanha em frente.
- É de lá que vêm os fósseis.
A galesa de Sarmiento tinha descoberto os ossos de um milodonte e a queixada de uma macroquénia nessa montanha. Comecei a subida e, protegido do granizo por uma rocha, comi uma lata de sardinhas rançosas. Um antigo fundo do mar tinha sido impelido até aqui: ostras fossilizadas, húmidas e reluzentes, com milhões de anos de idade, estavam incrustadas no solo.
Sentei-me e pus-me a sonhar com peixe. Só de pensar em portugaise* , lagosta de Maine, loup de mer* e bluefish fez-me água na boca. Até pensei em bacalhau, pois tinha o estômago às voltas por causa da minha dieta de borrego demasiado gordurento e sardinhas rançosas.
Cambaleando e fustigado pelas rajadas de vento, consegui encontrar umas facas de obsidiana e a couraça de um gliptodonte, o Propalaehoplophorus de Ameghino. Felicitei-me por uma descoberta de tal importância: nenhuns objectos tinham ainda sido encontrados junto de um gliptodonte. Mas, mais tarde, em Nova Iorque, o senhor Junius Bird assegurou-me que o meu gliptodonte fossilizara antes de o homem ter chegado às Américas.
De Paso Roballos , caminhei para Leste - ou antes, voei levado pelo temporal - , a mochila carregada de ossos e pedras.
*A portugaise é uma variedade de ostras e o loup de mer um peixe do Mediterrâneo.
Na Patagonia, Bruce Chatwin
fossil de gliptodonte (fantástico)
exposição "A Evolução de Darwin" na Gulbenkian
A não perder esta exposição de Darwin "A evolução de Darwin" na Fundação Calouste Gulbenkian.
Está espectacular, e com muitas referências à passagem de Darwin pela Patagónia na sua viagem e expedição científica no veleiro Beagle.
De 12/02/2009 a 24/05/2009
Terça, Quarta, Sexta e Domingo das 10h00 às 18h00
Quinta e Sábado das 10h00 às 21h00
Galeria de Exposições Temporárias da Sede
Em colaboração com o Museu de História Natural de Nova Iorque
Imagens da exposição em:
Portugal diário(UOL): http://diario.iol.pt/sociedade/iol-evolucao-darwin-ultimas-gulbenkian-charles-darwin/1042041-4071.html
Sapo fotos: http://fotos.sapo.cv/nFs617IH40fnjizLDCz8?a=116
Luis Neves
Etiquetas: Bruce Chatwin
Bilhete postal (xi)
O construtor da cabana era um americano corpulento (...)
Apesar de não escrever com facilidade, arranjou tempo para enviar esta carta a uma amiga do Utah:
- (....) A área onde vivo é boa para a agricultura, todas as espécies de cereais e legumes crescem sem irrigação, mas eu habito no sopé dos Andes. E toda a terra a leste daqui é pradaria e deserto, muito boa para gado mas que teria que ser irrigada para se tornar cultivável. Há muita terra boa à volta das montanhas para toda a gente que aqui viva nos próximos cem anos, pois tudo isto se encontra longe de civilização. (...) Para chegar ao Chile temos de atravessar as montanhas, o que se julgava ser impossível de fazer até ao verão passado, quando se soube que o Governo chileno abrira uma estrada que atravessa quase toda a Cordilheira de lado a lado. Assim, no próximo Verão, já poderemos ir a Puerto Mont, no Chile, em cerca de quatro dias enquanto, antigamente, levávamos dois meses.
“Na Patagónia” (pags. 66-67), de Bruce Chatwin, Quetzal Editores, 2004
foto minha (Chile, vulcões) foto minha (Argentina, floresta)Algures nos Andes, entre a Argentina e o Chile
Os Andes, que emoção, dia inteiro de travessia por lagos e sinuosos caminhos de terra batida, carro barco carro barco carro barco só faltou andarmos de burro, saímos do País da bandeira solar, mais lagos mais picos nevados floresta densa cascatas vulcões, estamos de novo no Chile.
azuki
Bilhete postal (x)
O velhote deu uma volta pela horta e pelo jardim plantado com flores da época. Após ter-se certificado de que elas apanhariam chuva suficiente, voltou para dentro de casa. À parte o telhado de metal, nada a distinguia das casas do Sul da Alemanha. As armações de madeira entulhadas de gesso branco, as persianas cinzentas das janelas, a cerca com cancela, o soalho bem esfregado, o painelamento pintado, o lustre de osso de veado e gravuras da região do Reno.
Anton Hahn tirou o boné de tweed e pendurou-o nas hastes de uma cabeça de veado. Descalçou as botas e as polainas e pôs uns chinelos de sola de corda. Tinha a cabeça chata no alto e o rosto enrugado e vermelho. Uma menina com rabo de cavalo entrou na cozinha.
- Quer o cachimbo, onkel?
- Bitte.
“Na Patagónia” (pag. 96), de Bruce Chatwin, Quetzal Editores, 2004
foto minha (hotel Llao Llao)
San Carlos de Bariloche, Patagónia argentina
Próximo dos chalés do fondue dos chocolates da “suiça-alemã” Bariloche (chamam-lhe
Brasiloche, por ter tantos turistas brasileiros), dentro dos cerca de 750.000 ha do Parque Nacional Nahuel Huapi, neste colosso alpino que é o
hotel Llao Llao, um dia de passeio pelo exuberante bosque andino patagónico, por caminhos de duendes e vilas que são autênticos relógios de cuco. Tenho que fazer um certo esforço para me lembrar de que estou na Argentina.
azuki
Bilhete postal (ix)
Na sala de jantar da minha avó havia um aparador com portas de vidro e dentro desse aparador um pedaço de pele. Era apenas um bocadinho, mas espesso e coriáceo, com manchas de pêlo avermelhado e rijo. (...)
- O que é aquilo?
- Um pedaço de brontossauro.
(...) Este brontossauro, em particular, tinha vivido na Patagónia, uma região da América do Sul nos confins do mundo. Caíra num glaciar há milhares de anos e deslizara por uma montanha abaixo numa prisão de gelo azul.
“Na Patagónia” (pag. 9), de Bruce Chatwin, Quetzal Editores, 2004
foto minha (glaciar Perito Moreno)
Parque Nacional Los Glaciares, Calafate, Patagónia argentinaLagos, bosques, montanhas e o branco azulado de quase 300 glaciares... Estamos “a un paso del cielo”, como se lê no site deste hotel
Los Notros, que é coisa de outra galáxia. Andei durante cerca de duas horas sobre aquele menino que se vê lá ao fundo, Perito Moreno, o mais belo glaciar do mundo. Uma experiência inigualável. Este, foi um dos dias de assombro da minha vida. Assombro.
azuki
PS – vejam como é belo, o Parque (coloquei a lapiseira em cima do Perito Moreno):
língua dos índios yaghan (Terra do Fogo)
O jovem Thomas Bridges tinha tido a paciência e o ouvido para aprender com um índio chamado George Okkoko a dominar a língua que Darwin desprezara. Descobriu, com grande surpresa, uma gramática e um vocabulário complexos que ninguém suspeitaria num povo «primitivo». Aos dezoito anos, decidiu criar um dicionário que o ajudaria «a falar-lhes, para minha satisfação e sua edificação, do amor de Jesus». Esta gigantesca tarefa ainda não estava finda quando ele veio a falecer em 1898. Fizera a lista de cerca de 32 000 palavras sem ter tido tempo de esgotar as suas possibilidades totais de expressão.O Dicionário sobreviveu aos índios, constituindo o seu monumento.foto de índios Yamana (Yagan)
no site El Sur: Patagonia , Terra del Fuego
O dilema de Bridges é bastante comum. Constatando nas línguas «primitivas» uma falta de palavras para exprimir ideias morais, muito boa gente assumia que essas ideias não existiam. Mas os seus conceitos de «bom» ou de «belo», tão essenciais ao pensamento ocidental, não possuem qualquer significado a não ser que estejam enraizados nas coisas....
A língua yaghan - e por inferência todas as línguas - processa-se como um sistema de navegação. As coisas nomeadas são pontos de referência, alinhados ou comparados, que permitem àquele que fala a frase seguinte. Se Bridges tivesse descoberto a amplidão das metáforas yaghans, a sua tarefa nunca mais teria acabado. Chegou-nos, no entanto, o suficiente para termos uma ideia da clareza do seu intelecto.O que é que havemos de pensar de indivíduos que definiam a «monotonia» como «uma ausência de amigos machos»? Ou que empregavam para «depressão» a palavra que descrevia a fase vulnerável do ciclo de um caranguejo, em que o animal, desprovido da sua velha concha, aguarda que lhe cresça uma nova? Ou que fazia derivar «preguiçoso» do pinguim? foto da net: Capa de livro
Thomas Bridges inventou o termo yaghan a partir de um sítio chamado Yagha: os índios chamavam-se a eles próprios yámana. Empregue como verbo, yámana significa «viver, respirar, ser feliz, restabelecer-se de uma doença ou ser são». Como substantivo, significa «gente» por oposição aos animais. Mão, com o sufixo yámana, era uma mão humana, uma mão estendida em sinal de amizade, opondo-se a uma garra mortal.Na Patagónia, Bruce Chatwin E para Azuki a nossa viajante, deixo aqui um Tango do Piazola "Vuelvo al Sur"
No Youtube pelos Tamango; http://www.youtube.com/watch?v=xbFdngoPHPE
a letra aqui http://www.limbos.org/sur/elsur.htm
"Os ventos da Patagónia tatuaram a minha imaginação com imagens trágicas e obscenas."
Fernando Pessoa - ode maritíma
Luis Neves
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Bilhete postal (viii)
A história levou uns anos a tirar a limpo. O animal de Charley Milward não era um brontossauro, mas um braditério ou preguiça-gigante. Ele nunca encontrou um espécime intacto, nem sequer um esqueleto inteiro, mas uns restos de pele e ossos, conservados pelo frio e pela ausência de humidade e sal, numa gruta do estreito da Última Esperança, na Patagónia chilena. Enviou a colecção para Inglaterra e vendeu-a ao Museu Britânico. Esta versão era menos romântica, mas tinha o mérito de ser verdadeira.
“Na Patagónia” (pag. 11), de Bruce Chatwin, Quetzal Editores, 2004
foto minha (ao fundo, os Cuernos del Paine)
Parque Nacional Torres del Paine, Patagónia chilena
Encontro-me na província chilena Da Última Esperança, em pleno Parque Nacional Torres del Paine. São 242.000 ha dominados pelos maciços do Paine, repletos de montes, lagos, lagunas, rios, glaciares e cascatas. E muitos animais, tão próximos de nós. Bem mais pequena e mais jovem que os Andes, a beleza desta cordilheira do Paine está associada à forma das suas montanhas: as linhas verticais das Torres e os curiosos Cuernos.
foto minha
O único som que se ouvia era o lamento de um guanaco. Como um bebé a tentar chorar e espirrar ao mesmo tempo. Avistava-se o bicho a uns cem metros, um macho solitário, maior e mais elegante que um lama, de pêlo cor de laranja e cauda branca erguida. Diz-se que os guanacos são tímidos, mas, pelos vistos, este pelava-se por companhia. E quando uma pessoa completamente estafada se deitava no saco de dormir, ele lá se punha a choramingar guardando a distância. De manhã, aproximava-se, mas o choque de ver um tipo a sair da casca transtornava-o. Era o fim da amizade e fugia aos pulos por cima dos arbustos como um galeão no alto mar.
“Na Patagónia” (pags. 112-113), de Bruce Chatwin, Quetzal Editores, 2004 azuki
Continuando com Sepúlveda
Bom vinho. Bebe-se com agrado e, enquanto o faço, vem-me à memória certa história que Bruce recordava com especial agrado. Numa viagem de regresso da Patagónia, e com a mochila cheia de cadernos Moleskin em que fixara a matéria-prima daquilo que mais tarde intitularia Na Patagónia, um dos melhores livros de viagens de todos os tempos, Bruce passou um dia por Cucao, na parte oriental da ilha. Tinha fome de vários dias e por esse motivo queria comer, mas sem carregar demasiado o estômago. - Por favor, quero comer qualquer coisa leve - indicou ao empregado do restaurante. Serviram-lhe meia perna de borrego assada e , quando reclamou insistindo em que queria comer qualquer coisa leve, recebeu uma daquelas respostas que não admitem réplica: - Era um borrego muito magro. O senhor não encontrará um bicho mais leve em toda a ilha..... Esta é uma viagem que começou há vários anos, não interessa quantos. Começou naquele dia frio de Fevereiro em Barcelona, sentado com Bruce a uma mesa do café Zurich. Acompanhavam-nos os dois velhos gringos, mas só nós podiamos vê-los. Éramos quatro à mesa, de forma que ninguém se deve escandalizar por termos esvaziado duas garrafas de conhaque. Talvez nunca consigamos saber como é que aqueles dois bandidos organizavam os seus assaltos aos bancos, mas posso contar como um inglês e um chileno, muito bêbados por volta das cinco da tarde , planearam uma viagem aos confins do mundo. - Quando é que partimos, chileno? - Assim que nos deixarem, inglês. - Ainda tens problemas com os primatas que governam o teu país? - Eu não. Eles é que têm comigo. - Percebo. Não importa. Assim podemos preparar melhor a viagem. E continuaram a falar de outros temas menores, como encontrar a fazenda onde supostamente decapitaram Butch Cassidy e Sundance Kid, visitar a sepultura onde dizem que descansam os dois aventureiros, reconstruir os últimos dias das suas vidas e, finalmente, encher a quatro mãos umas tantas páginas em forma de saga ou de romance. Quando recebi a tão ansiada licença para voltar ao sul do mundo, Bruce Chatwin já tinha iniciado a inevitável viagem. Penso que ao comprar todas as existências dos Moleskin numa velha papelaria parisiense da Rue de l'Ancienne Comédie, a única que as vendia, Bruce preparava-se sem saber para a longa viagem final. Que raio anotará ele neles, onde quer que esteja?... até que me lembrei que os compromissos assumidos com os amigos são sagrados e decidi partir ao encontro do fim do mundo nos dias seguintes. Por fim chamaram os passageiros. Lá vamos , Bruce, condenado inglês que viajará clandestinamente , escondido entre as folhas do Moleskin. No dia seguinte à noite estaremos na Patagónia, seguindo os passos dos gringos que deram origem a esta aventura, e nem para eles nem para os gaúchos que conheceste será uma surpresa verem-nos chegar, porque os Patagónios, na densa solidão dos seus ranchos, garantem que «a morte começa quando alguém aceita que morreu».No livro "Patagónia Express", Luis SepúlvedaLuis Neves
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Encontro de Luis Sepúlveda com Bruce Chatwin
Enquanto espero, penso naqueles dois gringos velhos que moveram os frágeis fios do destino e conseguiram que Bruce Chatwin e eu nos encontrássemos certo meio-dia invernoso na esplanada do café Zurich de Barcelona.Um inglês e um chileno. E, como se não fosse suficiente, dois tipos com pouco carinho pelos fonemas «pátria». O inglês, nómada, porque não podia ser outra coisa, e o chileno, exilado por idênticas razões. Demónios! Alguém deveria proibir este tipo de encontros, ou pelo menos garantir que não aconteçam na presença de menores.O encontro, organizado pelo editor espanhol de Bruce, era ao meio-dia e fui com absoluta pontualidade. O inglês chegara primeiro; estava sentado diante de uma cerveja a ler um dos perversos livros de banda desenhada de El Víbora. Para lhe chamar a atenção dei umas pancadinhas na mesa.O inglês levantou a cabeça e bebeu um gole antes de falar.- Um sul-americano pontual é qualquer coisa que consigo suportar, mas um tipo que depois de viver vários anos na Alemanha vai a um primeiro encontro sem trazer flores é simplesmente intolerável.- Se quiseres volto dentro de quinze minutos e com flores - respondi.Com um gesto indicou-me uma cadeira. Sentei-me, acendi um cigarro, e ficámos a olhar um para o outro sem dizermos palavra. Ele sabia que eu sabia dos dois gringos, e eu sabia que ele sabia dos dois gringos.- És da Patagónia? - perguntou, quebrando o silêncio.- Não, de mais a norte.- Melhor. Não se pode confiar nem num quarto daquilo que os Patagónicos dizem. São os maiores mentirosos da Terra - comentou, pegando na cerveja. Senti-me obrigado a devolver o toque.- É que aprenderam a mentir com os Ingleses. Conheces as mentiras que Fitzroy inventou ao pobre do Jimmy Button?- Uma a uma - disse Bruce, e deu-me a mão.A cerimónia de apresentação acabava satisfatoriamente e desatámos a falar daqueles dois gringos velhos que talvez nos observassem de algum lugar desconhecido nos mapas, contentes por serem testemunhas daquele encontro.No livro "Patagónia Express", Luis SepúlvedaGostei muito desta parte do livro do Sepúlveda, que escreveu este livro por se ter encontrado com Chatwin.
Luis NevesEtiquetas: Bruce Chatwin
carta de amor e um farol em Ushuaia
Penso em ti, sempre que vejo um farol. Neste momento, neste barco, frente a este farol, só tu existes. Fotografei-o vezes sem conta, a pensar em ti. Porque tu és o meu farol.
azuki
Bilhete Postal (vii)
Na margem norte dos primeiros estreitos, um farol às riscas brancas e laranja erguia-se numa praia de seixos cristalinos, mexilhão lilás e carapaças escarlates de caranguejos vazias. À beira da água, ostraceiros debicavam molhes de algas avermelhadas à procura de marisco. A menos de duas milhas de distância, a costa da Terra do Fogo estendia-se numa faixa cor de cinza.
“Na Patagónia” (pag. 160), de Bruce Chatwin, Quetzal Editores, 2004
foto minha
Canal Beagle, Terra do Fogo, Argentina
Nem uma pinga de vento e um sol radioso, ao longo do nosso percurso pelo Canal Beagle. Passei a tarde a deslumbrar-me com o azul do céu reflectido no azul da água, com o branco das nuvens em torno do branco dos Andes. Tentei imaginar piratas, exploradores, coleccionadores, cientistas, baleeiros, missionários, capatazes, mercadores, garimpeiros, condenados e índios.
azuki
Ah! Patagon!
O desembarque de Magalhães em San Julián, no ano da graça de 1520, deu azo a um caso semelhante:Do navio, a tripulação avistou um gigante todo nu a dançar na praia, «a dançar, a pular e a cantar, e enquanto cantava ia lançando punhados de areia e de poeira por cima da cabeça». Quando os brancos se aproximaram, ergueu um dedo no ar como quem perguntava se eles tinham descido do céu. Levado à presença do capitão-mor, tapou a nudez com um manto de pele de guanaco.O gigante era um índio tehuelche pertencente à tribo dos caçadores de pele acobreada, cujo tamanho, força e voz tonitroante contrastava com o seu temperamento dócil.O cronista de Magalhães, António Pigafetta, conta que estes índios eram mais velozes do que cavalos, guarneciam de sílex as pontas das flechas, comiam carne crua, viviam em tendas e não paravam no mesmo lugar, «como ciganos».Segundo a tradição, Magalhães teria exclamado: - AH! Patagon! , querendo isto dizer «grande pé» por causa do tamanho dos moccasins que o índio calçava. É esta a origem da palavra «Patagónia», que é geralmente aceite sem discussão. Mas embora a pata seja «pé» em espanhol, o sufixo gon não faz sentido, no entanto, significa «um rugido» ou «ranger de dentes» em grego; como Pigafetta descreve os Patagões «rugindo como touros», supõe-se que havia um marinheiro grego na tripulação de Magalhães, provavelmente um fugitivo da ocupação turca.
"Na Patagónia", Bruce Chatwin foto "Los indios Tehuelche" na página http://www.limbos.org/sur/tehue.htm
Muita informação para ir visitar a Patagóniahttp://edmundocecilio.blogspot.com/2007/03/patagnia-4x4.htmlhttp://www.terra-australis.com.br/terra-australis/viagem/viagem1.htmhttp://www.geocities.com/TheTropics/4363/patagonia/index.htmLuis Neves
Etiquetas: Bruce Chatwin
Bilhete postal (vi)
Tierra del Fuego – a Terra do Fogo. Os fogos eram os dos índios fueguinos. Segundo uma outra versão, Magalhães teria avistado apenas fumo e chamou-lhe Tierra del Humo, mas Carlos V comentou que não havia fumo sem fogo e mudou-lhe o nome.
Os fueguinos já não existem e todos os fogos foram extintos. Agora, só a fumaça das refinarias de petróleo se eleva no céu da noite.
Até 1619, ano em que a frota de Schouten e Le Maire dobrou o cabo Horn – tendo-o denominado assim não por causa da sua forma, mas em honra da cidade de Hoorn, em Zuiderzá -, os cartógrafos representavam a Tierra del Fuego como o cabo setentrional do Antíctone e povoavam-na com os monstros apropriados: górgones, sereias e pássaros fabulosos, como aqueles condores enormes capazes de transportarem elefantes nas garras.
“Na Patagónia” (pag. 161), de Bruce Chatwin, Quetzal Editores, 2004
foto minha
Parque Nacional da Terra do Fogo, Argentina
Sempre imaginei uma Terra do Fogo desolada e inóspita, como só o extremo do mundo poderia ser, uma paisagem que fizesse juz ao nome e que evocasse a fúria dos elementos... afinal, deparei-me com os frondosos bosques subantárcticos, os lagos e as montanhas verdes do seu Parque Nacional e uma outra Terra do Fogo passou a habitar a minha mente.
azuki
Bilhete postal (v)
Prossegui viagem até à cidade mais ao sul do mundo. Ushuaia, no início, era apenas um casarão prefabricado fundado em 1869 pelo missionário W. H. Stirling ao lado das barracas dos índios Yaghan. Anglicanismo, hortas e índios floresceram juntos durante dezasseis anos. Depois, a marinha argentina entrou em cena e os índios morreram de sarampo e pneumonia.
Aos poucos, a povoação passou de base naval a colónia penal.
“Na Patagónia” (pag. 175), de Bruce Chatwin, Quetzal Editores, 2004
foto minha (Ushuaia, ao longe)
Ushuaia, Terra do Fogo, Argentina
Acabamos de chegar ao fim do mundo. Estamos hospedados num sítio absolutamente improvável, numa espécie de castelo de montanha, com uma vista magnífica para o Canal Beagle.
Ushuaia é uma pequena e colorida cidade de casas térreas com telhados de zinco, aninhada entre os Andes e o mar. Inesquecível Ushuaia.
azuki
Nem de propósito ...
Não resisto a integrar aqui, por motivos óbvios para quem tenha acompanhado a nossa leitura deste mês, parte do texto apresentado pelo João Mário Silva na Mesa 7 das Correntes d'Escritas. O texto completo pode ser lido aqui, no Bibliotecário de Babel: "(...) Por onde me levam os livros? Sinto-me tentado a dar a resposta mais óbvia: levam-me por todo o lado. A literatura é, foi e continuará a ser o mais completo dos passaportes. Aquele que nos permite viajar até aos confins do mundo sem sairmos do nosso quarto. Sim, um livro pode ser uma caravela, um TGV, uma nave espacial, uma máquina do tempo. Isto é, um meio de transporte, mas no sentido metafísico do termo. Quando o metemos no bolso, é uma multidão que metemos no bolso: dezenas de personagens, as suas vidas, as suas rotinas, os seus júbilos, a sua solidão. Quando o arrumamos na estante, arrumamos épocas inteiras, impérios, dinastias; ou então coisas pequenas, um cortejo de gestos, palavras por dizer, crepúsculos, amores perdidos. Um livro pode levar-nos à esquina de uma rua que não existe, mas é todas as ruas, ou ao fundo mais fundo do universo.
Posso dar exemplos. É sempre bom dar exemplos.
A Patagónia. Terra fria, na ponta mais remota da América do Sul, quase quase a chegar à Antártida. Eu nunca fui à Patagónia. Mas eu já fui à Patagónia com Bruce Chatwin. Deambulei com ele por aquelas terras desoladas, procurei com ele os vestígios de um brontossauro que afinal era uma preguiça-gigante, vi com os seus olhos o gelo e os albatrozes, aprendi com ele a soletrar a palavra Ushuaia.
Outro exemplo. Eu nunca estive na costa Leste de Inglaterra, em East Anglia, condado de Suffolk. Mas eu estive na costa Leste de Inglaterra, em East Anglia, no condado de Suffolk, ao acompanhar o escritor W. G. Sebald nas longas caminhadas sob um céu de nuvens que ele fez em Agosto de 1992 e relatou num livro magnífico e inclassificável: Os Anéis de Saturno. Agora que penso nelas, tenho a certeza que as paisagens descritas por Sebald, com as suas frases muito longas, muito precisas e muito elegantes, fios de uma longa rede de derivas e melancolias, reflexões filosóficas e apontamentos eruditos, evocação de tragédias colectivas e de reminiscências pessoais, tenho a certeza que essas paisagens são muito mais verdadeiras do que as paisagens que eu encontraria na costa Leste de Inglaterra, em East Anglia, no condado de Suffolk, se lá fosse um dia (e talvez nunca vá)"
ams
volto a ler Chatwin e sinto-me sua cúmplice
A 23 do passado Dezembro voei para o Chile, também com o "Na Patagónia" nas mãos, releitura que me preencheu as 13 horas de avião desde Madrid até Santiago. A viagem fazia já parte do meu imaginário, mas aconteceu mais rapidamente pois a minha melhor amiga convidou-me para madrinha do seu casamento (com um chileno), cerimónia a decorrer num pueblo perto de Valparaíso, chamado Olmué. Proposta imperdível, pela amizade e pelo sonho tornado realidade. Três semanas depois trazia o Chile de volta para Portugal no coração. Agradeço a descrição que fez da Patagónia e não posso concordar mais. As palavras, bem como as fotografias, são no entanto modestas quando se trata de descrever a Patagónia. Há uma escala, um isolamento e uma harmonia difíceis de explicar. Cinco dias de caminhada dentro do Parque Torres del Paine e a viagem no Estreito de Magalhães até à reserva de pinguins da Ilha Magdalena são experiências que vou recordar para sempre. Volto a ler Chatwin e sinto-me sua cúmplice - agora sim posso finalmente compreendê-lo.
Raquel
Bilhete postal (iv)
O deserto da Patagónia não é um deserto de areia, ou cascalho, mas uma extensão de arbustos espinhosos de folhas cinzentas que, quando esmagados, largam um odor desagradável. Contrariamente aos desertos da Arábia, nunca provocou nenhuma manifestação espiritual espectacular, mas tem o seu lugar nos arquivos da experiência humana. Charles Darwin achou irresistível as suas qualidades negativas. Na Viagem do Beagle tentou em vão explicar por que motivo estas “áridas extensões”, mais do que qualquer outra maravilha que vira, o tinham a tal ponto entusiasmado.
Por volta de 1860, W. H. Hudson (...) dedica um capítulo inteiro de Deambulando na Patagónia para responder à questão posta por Darwin e acaba por concluir que os que andam pelo deserto descobrem neles próprios uma tranquilidade primordial (igualmente experimentada pelo mais primitivo dos selvagens) que talvez muito se assemelhe à paz divina.
“Na Patagónia” (pag. 27), de Bruce Chatwin, Quetzal Editores, 2004
foto minha
Algures na Província de Chubut, Patagónia argentina
Comecei hoje a perceber como a Patagónia é uma planura imensa e desolada, um deserto de vegetação rasteira, e a intuir um pouco da interrogação de Darwin: In calling up images of the past, I find that the plains of patagonia frequently cross before my eyes; yet these plains are pronounced by all wretched and useless... Why then...have these arid wastes taken so firm a hold on my memory?
Pode não ser paisagem arrebatadora, mas tem o fascínio que provocam em nós os grandes espaços. A meseta patagónica é como a carne argentina, não precisa de adereços. Basta aquilo.
azuki
A avidez pelo desconhecido
Sobre Chatwin, a primeira nota que aqui deixei referia duas coisas: a viagem que fiz à Córsega em 2005 e o livro de
W. G. Sebald que li pouco após essa viagem.
Campo Santo, o livro, é uma obra póstuma que, para além de alguns textos que originariamente se destinavam a uma obra sobre a Córsega, inclui também ensaios sobre
Peter Handke, Gunter Grass, Jean Améry, Peter Weiss, Kafka, Nabokov, e, por fim,
Bruce Chatwin.
Acontece que comprei o livro por causa dos textos sobre a Córsega, textos esses cuja leitura revelou estranhíssimas coincidências na fixação de algumas memórias comuns. Em suma, acabei a ler Sebald por ter ido à Córsega e a ler Chatwin por ter lido Sebald : "Como o próprio Chatwin, que será sempre um enigma, os seus livros também são difíceis de classificar. Certo é que a sua construção e intuito não os colocam em nenhum género conhecido. Inspirados numa espécie de avidez pelo desconhecido, movem-se segundo uma linha cujos pontos de demarcação são essas curiosas manifestações e objectos dos quais não podemos dizer se pertencem à realidade ou são fantasmas que a nossa cabeça vem gerando desde o princípio dos tempos. Estudos antropológicos e mitológicos na tradição de Tristes Tropiques, de Lévi-Strauss, histórias de aventuras ligadas às nossas primeiras leituras infantis, recolhas de factos reais, livros de sonhos, romances folclóricos, exemplos de exotismo apaixonado, penitências puritanas e arrebatadoras visões barrocas, negação de si e confissões: são todas estas coisas juntas. Talvez se lhes faça melhor justiça vendo na promiscuidade com que quebram o molde do modernismo uma manifestação tardia dos relatos de viagem que remontam a Marco Polo, em que a realidade está continuamente a entrar no metafísico e no miraculoso e o caminho pelo mundo é feito desde o princípio com os olhos postos no fim." (W.G. Sebald, Campo Santo (pp. 184-185)
ams
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Bilhete Postal (iii)
Os pinguins são monogâmicos e fiéis até à morte. Cada casal ocupa uma minúscula porção de território e expulsa os intrusos. A fêmea põe um máximo de três ovos. Não há repartição de trabalho entre os sexos: ambos vão à pesca e fazem turnos para tratar das crias. A colónia dissolve-se com a chegada do tempo frio, nas primeiras semanas de Abril.
As crias tinham saído dos ovos e já eram maiores do que os pais. Ficámos a vê-los bamboleando-se desajeitadamente até à margem e mergulhar. No século XVII, o explorador Sir John Narborough esteve no mesmo sítio e descreveu-os “todos juntos e aprumados, como um grupo de crianças de aventais brancos".
Albatrozes e pinguins são as últimas aves do mundo que eu quereria matar.
“Na Patagónia” (pags. 128-129), de Bruce Chatwin, Quetzal Editores, 2004
foto minha
Punta Tombo, Patagónia argentina
Visitamos a maior colónia de pinguins de Magalhães (não são uns pinguins quaisquer, são os de Magalhães!) do mundo. Um pedaço de costa, onde centenas de milhares de pinguins passam o verão a namorar e a procriar, em requebros atarefados. Gostar de pinguins deve ser das coisas mais consensuais do mundo, não te parece?
azuki
sobre a Patagónia e as viagens
Viajar! perder países!
Ser outro constantemente,
Por a alma não ter raízes,
De viver de ver somente!
Isso é VIVER.
Carlos A.
Correntes d'Escritas
É o décimo aniversário das Correntes.
Este ano, há mais de 120 escritores
e cerca de 2500 alunos vão recebê-los nas suas salas de aula.
35 livros serão apresentados pelos seus autores.
Na Póvoa do Varzim, de 11 a 14 de Fevereiro
a não perder.
info
Bilhete postal (ii)
Deixei o rio Negro e prossegui na direcção do sul, para Puerto Madryn.
Cento e cinquenta e três galeses desembarcaram aqui, em 1865, do brigue Mimosa. Era gente pobre à procura de uma Nova Gales, refugiados de regiões mineiras sobrepovoadas e de um movimento independentista fracassado, bem como de uma lei parlamentar proibindo o ensino da língua galesa nas escolas. Os seus dirigentes tinham catado o planeta à procura de uma terra acolhedora que os ingleses não tivessem contaminado. Escolheram a Patagónia pela sua total solidão e clima execrável: não queriam enriquecer.
“Na Patagónia” (pag. 35), de Bruce Chatwin, Quetzal Editores, 2004
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Gaiman, Patagónia argentina
Em 1865, 135 galeses desembarcaram aqui, à procura de uma terra sem ingleses. Nunca me imaginei a percorrer semelhante distância para tomar uma chávena de chá galês.
azuki
Bilhete postal (i)
Península Valdés, Patagónia argentina
1. Vinda de Buenos Aires, encontro-me agora mais a sul, em Puerto Madryn, uma simpática cidade costeira de 60.000 habitantes. Amanhã, passamos o dia na reserva natural da Península Valdés, local privilegiado de reprodução para lobos marinhos, baleias francas e diversos tipos de pássaros. Vou gostar muito de ver as acrobacias dessas 40 toneladas de animal.
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2. Que sorte, com as baleias francas! Estivemos num golfo onde se podem encontrar 507 dos cerca de 3.000 indivíduos da espécie, e estes animais curiosos e afáveis fizeram-nos uma festa. Também avistamos orcas, num dos únicos lugares do planeta onde elas recorrem à técnica que consiste em saltar para terra e abocanhar as presas. Não, o nosso voyerismo sádico não foi presenteado com semelhante espectáculo. Também nada de morsas, essas vivem no pólo norte, mas inúmeros lobos do mar e elefantes marinhos.
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azuki
azuki
Patagónia
Hosteria Pehoe, no lago com o mesmo nome, Parque Nacional Torres del Paine, Patagónia Chilena
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Imensa e silenciosa, a Patagónia atravessa a Argentina e o Chile, representando quase um quarto do seu território e apenas 5% da população (a norte, começa algures no rio Colorado argentino e na cidade chilena de Puerto Montt; a sul, confesso que nem sei, o meu guia diz que a Terra do Fogo não lhe pertence, contrariando opinião generalizada). Terra inóspita, de clima extremo, onde o vento sopra incessante e o gelo tudo isola. Longínquo local de fantasia e de aventura, misterioso e sedutor, habitado por pouco mais do que lendas, por muitos imaginado mas por poucos conhecido. Berço dos índios Pehuenches, Mapuches, Tehuelches, Onas e Yamanas, massacrados pelas nossas espingardas e pelas nossas doenças. Provida da mais perigosa costa do mundo, feita de mar enraivecido e ventos do Pacífico, que deu origem à maior aventura marítima da História. Animal bravio, impróprio para os débeis, tardiamente explorado e quase indomável (onde existe pouco mais que criação de ovelhas, indústria mineira, actividade portuária, pesca, extracção de petróleo e de gás natural, turismo), mas com uma generosa dádiva ao viajante chamada evasão. Lugar de proporções incomuns e de diversidade extraordinária, com paisagens esculpidas ao longo de milhões de anos, combinando montanhas, planícies, costas de penhascos e campos de gelo.
Reservatório de dezenas de áreas naturais protegidas, esta terra de encantamento oferece-nos quase todos os cenários com que sempre sonhamos: uma estrada infinita na estepe semi-desértica, monumentais picos andinos de ar rarefeito, uma pequena estalagem no meio de um lago azul-turquesa, baías onde flutuam icebergs azulados, a costa branca recortada por fiordes canais e ilhas, pântanos de turfa colorida rodeados de vulcões, árvores solitárias torcidas pela inclemência do vento, bosques milenários, pequenas praias povoadas de pinguins e lobos marinhos, um céu límpido da mais límpida luz austral onde se projectam as asas de um condor, emaranhados de diques construídos pelos castores, majestosos glaciares que nos fazem sentir ínfimos e nos enchem a alma. É um dos mais belos lugares do mundo.
azuki
Já não há senão a Patagónia ...
No âmbito da leitura enquanto processo relacional, uma perspectiva interessante é a que consiste em considerar a intertextualidade como um processo duplo que actuaria tanto no plano da produção textual, como no plano da sua recepção. Ou seja: a intertextualidade seria tanto o conjunto das referências, de outros textos, que o autor integra, implícita ou explicitamente, na obra que escreve, como o conjunto das associações, provenientes da leitura de outros textos, que no espírito do leitor se produzem no decurso do texto que lê. A tese é arriscada e só é defensável se pensarmos que um texto, qualquer texto, o é apenas enquanto tiver quem o receba. O mesmo é dizer que o texto, qualquer texto, integra sempre o leitor na sua própria definição.
Vem isto a propósito desse outro eterno viajante que foi Blaise Cendrars, e da sua categorização da Patagónia, em «Prosa do Transiberiano», como um mítico último lugar: "Já não há senão a Patagónia, a Patagónia que convenha à minha imensa tristeza", epígrafe que o texto de entrada do livro de Chatwin claramente exemplifica, a partir da memória de infância que descreve e na qual se ligam a pele da preguiça-gigante (o suposto brontossauro de Charles Milward), o terror infantil da guerra e os possíveis e imaginados efeitos da bomba de cobalto. Efabulada na sua imaginação de criança como um último lugar seguro, a Patagónia é assim o mito a que regressa, em adulto, com a fuga que a escrita lhe permite empreender.
Como leitor de Chatwin, devo dizer que só dei pela epígrafe depois de ler o primeiro texto do livro. Devo também dizer, no entanto, que, enquanto o lia, me veio várias vezes ao espírito aquele Joan Sutter, Imperador da Califórnia, personagem real da colonização do far west, de que trata o romance «L'Or» (O ouro) de Blaise Cendrars. Será exagero pensar que talvez Chatwin o tomasse como modelo na evocação que faz do lendário Butch Cassidy?
ams
Etiquetas: Blaise Cendrars, Bruce Chatwin
também querias ser Bruce Chatwin??
encontrei um blogue em português que merece uma visita, e que tem um nome muito especial:
O Homem Que Queria Ser Bruce Chatwin. e
António Lucas Soares declara as suas intenções desta forma: "
A intenção deste projecto é reflectir sobre a ambiguidade dos nossos pontos de vista enquanto seres sociais. Não se descreve um acontecimento, uma situação, um traço cultural, mas antes atributos comuns de pessoas, do seu mundo, da sua vida ". Ora, este foi para mim um ponto de partida possível para a leitura deste mês, acrescido do meu desejo de ir à Patagónia. sendo a leitura a forma mais rápida e barata de descobrir novos mundos, inicie-se a viagem.
belém
Sobre Bruce Chatwin (1940-1989)
Na Patagónia (In Patagonia,1977), Quetzal, 2008
Leitura partilhável para este mês de Fevereiro, a obra inaugural da carreira de Bruce Chatwin como escritor merece - e dir-se-ia que exige - o conhecimento paralelo da sua biografia. Na impossibilidade de escrever eu próprio um resumo sofrível, opto por transcrever a nota da capa que se contém na biografia monumental de Nicholas Shakespeare: «Bruce Chatwin fez a sua entrada no meio literário em 1977 com o seu primeiro romance, Na Patagónia, que veio mudar a definição de Romance de Viagens, trazendo um novo vigor à literatura inglesa contemporânea. Não é possível arrumar dentro de um género literário os livros que se seguiram: O Vice-Rei de Ajudá, Os Gémeos de Black Hill, O Canto Nómada e Utz. Todos eles vieram confirmar o seu talento e a capacidade de se reinventar. Mas será que os leitores assíduos das suas obras conhecem realmente o verdadeiro Bruce Chatwin? / Chatwin foi várias coisas para várias pessoas: um director da Sotheby's com olhos de lince; um arqueólogo que presenciou a descoberta das primeiras provas da utilização do fogo pelo homem; um jornalista de sucesso do Sunday Times; um fotógrafo; um coleccionador de arte; um viajante incansável e um autor de best-sellers. / Casado durante 23 anos, Bruce foi também um homossexual activo. A dois tempos um ser social que adorava a convivência com os ricos e famosos e um misantropo sincero explorando os limites da solidão extrema. Melancólico e maníaco, intenso e hilariante, aquilo que mais gostava (sic) era de contar histórias - sobre os seus amigos, as pessoas que conheceu, as viagens que fez e, sobretudo, sobre si próprio».
No decurso do mês, espero voltar a Nicholas Shakespeare e, principalmente, a Campo Santo de W. G. Sebald, obra póstuma a cuja leitura devo, após uma viagem recente à Córsega (voltarei a isto), o interesse crescente pela obra literária de Chatwin.
ams
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(este blogue está temporariamente inactivo)
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"OS PAPEIS DE K.", de Manuel António Pina (1 a 3 de Outubro de 2003)
"AS ONDAS", de Virginia Woolf (13 a 20 de Outubro de 2003)
"AS HORAS", de Michael Cunningham (27 a 30 de Outubro de 2003)
"A CIDADE E AS SERRAS", de Eça de Queirós (30 de Outubro a 2 de Novembro de 2003)
"OBRA POÉTICA", de Ferreira Gullar (10 a 12 de Novembro de 2003)
"A VOLTA NO PARAFUSO", de Henry James (13 a 16 de Novembro de 2003)
"DESGRAÇA", de J. M. Coetzee (24 a 27 de Novembro de 2003)
"PEQUENO TRATADO SOBRE AS ILUSÕES", de Paulinho Assunção (22 a 28 de Dezembro de 2003)
"O SOM E A FÚRIA", de William Faulkner (8 a 29 de Fevereiro de 2004)
"EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO (Vol. I - Do lado de Swann)", de Marcel Proust (1 a 31 de Março de 2004)
"O COMPLEXO DE PORTNOY", de Philip Roth (1 a 15 de Abril de 2004)
"O TEATRO DE SABBATH", de Philip Roth (16 a 22 de Abril de 2004)
"A MANCHA HUMANA", de Philip Roth (23 de Abril a 1 de Maio de 2004)
"EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO (Vol. II - À Sombra das Raparigas em Flor)", de Marcel Proust (1 a 31 de Maio de 2004)
"A MULHER DE TRINTA ANOS", de Honoré de Balzac (1 a 15 de Junho de 2004)
"A QUEDA DUM ANJO", de Camilo Castelo Branco (19 a 30 de Junho de 2004)
"EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO (Vol. III - O Lado de Guermantes)", de Marcel Proust (1 a 31 de Julho de 2004)
"O LEITOR", de Bernhard Schlink (1 a 31 de Agosto de 2004)
"EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO (Vol. IV - Sodoma e Gomorra)", de Marcel Proust (1 a 30 de Setembro de 2004)
"UMA APRENDIZAGEM OU O LIVRO DOS PRAZERES" e outros, de Clarice Lispector (1 a 31 de Outubro de 2004)
"EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO (Vol. V - A Prisioneira)", de Marcel Proust (1 a 30 de Novembro de 2004)
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"ENSAIO SOBRE A LUCIDEZ", de José Saramago (21 a 31 de Dezembro de 2004)
"EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO (Vol. VI - A Fugitiva)", de Marcel Proust (1 a 31 de Janeiro de 2005)
"A CRIAÇÃO DO MUNDO", de Miguel Torga (1 de Fevereiro a 31 de Março de 2005)
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"D. QUIXOTE DE LA MANCHA", de Miguel de Cervantes (de 1 de Maio a 30 de Junho de 2005)
"EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO (Vol. VII - O Tempo Reencontrado)", de Marcel Proust (1 a 31 de Julho de 2005)
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"NOVE CONTOS", de JD Salinger (21 a 29 de Outubro de 2005)(link)
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"A ORIGEM DAS ESPÉCIES", de Charles Darwin (1 a 30 de Novembro de 2009)
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